Segundo Deus (o cristão), tudo se pode

Léo Rosa de Andrade

 

Li esse texto há muito tempo. É de Bento Espinosa (1632-1677). O filósofo, filho de portugueses, nascido na Holanda, um dos poucos lugares em que se podia pensar um tanto mais livremente quando o Renascimento, emprenhado de Iluminismo, paria a Modernidade.

A sua família, judia, fugiu da inquisição lusitana. Ele recebeu a melhor educação judaica. Tornou-se cético com relação às verdades religiosas, submetendo-as à História. Foi um dos grandes racionalistas do século 17. Morreu, aos 44 anos, perseguido por todas as religiões.

Espinosa defendia uma ideia protoateísta: deus é a natureza. Refutava uma divindade personalizada. Em existindo um deus, tudo seria deus. Foi excomungado, claro. Para se compreender a solidão a que foi condenado, há que se entender as consequências de uma excomunhão.

Em um tempo de mentalidade religiosa acachapante, um excomungado restava banido da totalidade das relações sociais. A brutalidade era minudente: não transitava na comunidade; não era recebido pela família; não se o cumprimentava; nem sequer se lhe dirigia o olhar.

Isso já não é tão importante: irmão meu, Lédio Rosa de Andrade, comportou-se “mal” em missa a que fora obrigado. O padre (sem, aliás, poderes para tanto) excomungou-o no ato. Éramos adolescentes. Fiquei com inveja: infelizmente, nunca fui prestigiado com tal anátema.

Bem, o texto de que falo, quando o li, fiquei impressionado. Mas já não o recordava. Agora se me o presenteiam. Ele me vem como grata recordação (para registro, há quem negue a autoria ao filósofo, o que me é irrelevante). Trata-se do Deus de Espinosa, ou O Recado de Deus.

Os que necessitam de um criador inventaram-no severo, vingativo, perverso. Esse “pai” teria feito a humanidade cheia de desejos, oferecido a ela um mundo repleto de prazeres, mas estabelecido severas interdições. Os desejos deveriam ser contidos; os prazeres, jamais gozados.

A desobediência conduziria ao sofrimento, às torturas, ao desespero eterno. Espinosa oferece outro deus, um deus para quem se pode e se deve gozar a vida. O que vai adiante eu edito de palavras ditadas por deus a Espinosa em noite de bom papo e extrema sensatez:

“Para de ficar rezando e batendo o peito! O que quero que faças é que saias pelo mundo e desfrutes de tua vida. Quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que fiz para ti.

Para de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a minha casa. Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde vivo.

Para de me culpar da tua vida miserável: Eu nunca te disse que eras um pecador, ou que tua sexualidade fosse algo mau. O sexo é um presente que te dei e com o qual podes expressar teu amor, teu êxtase, tua alegria. Assim, não me culpes por tudo o que te fizeram crer.

Para de ler supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo. Se não me podes ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho… Não me encontrarás em nenhum livro. Deixa de me pedir. Tu vais me dizer como fazer meu trabalho?

Para de ter tanto medo de mim. Eu não te julgo, nem te critico, nem me irrito, nem te incomodo, nem te castigo. Para de me pedir perdão. Não há nada a perdoar. Eu te fiz cheio de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre-arbítrio.

Como posso te culpar se respondes a algo que eu pus em ti? Como posso te castigar por seres como és, se eu sou quem te fez? Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a todos meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade? Que tipo de Deus pode fazer isso?

Esquece qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei; são artimanhas para te manipular, para te controlar. Só te geram culpa. Respeita teu próximo e não faças o que não queiras para ti. A única coisa que te peço é que prestes atenção a tua vida, que teu estado de alerta seja teu guia.

Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso. Esta vida é o único que há aqui e agora, e o único que precisas.

Eu te fiz absolutamente livre. Não há prêmios nem castigos. Não há pecados nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um registro. Tu és absolutamente livre para fazer da tua vida um céu ou um inferno.

Não te poderia dizer se há algo depois desta vida, mas posso te dar um conselho: vive como se não o houvesse, como se esta fosse tua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir. Assim, se não há nada, terás aproveitado da oportunidade que te dei. E se houver, tem certeza de que não vou te perguntar se foste comportado ou não. Vou te perguntar do que mais gostaste, se te divertiste… O que aprendeste?

Para de crer em mim – crer é supor, adivinhar, imaginar. Eu não quero que acredites em mim. Quero que me sintas em ti. Quero que me sintas em ti quando beijas tua amada, quando agasalhas tua filhinha, quando acaricias teu cachorro, quando tomas banho no mar.

Para de louvar-me! Que tipo de Deus ególatra tu acreditas que eu seja? Aborrece-me que me louvem. Cansa-me que agradeçam. Tu te sentes grato? Demonstra-o cuidando de ti, de tua saúde, de tuas relações, do mundo. Sentes-te olhado, surpreendido?… Expressa tua alegria!

Para de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que te ensinaram sobre mim. A única certeza é que tu estás aqui, que estás vivo, e que este mundo está cheio de maravilhas.” Acrescento à voz divina: Deixa de ser ovelha, então, sem pasto nem pastor, vai viver.

 

Léo Rosa de Andrade, escritor, professor, psicanalista e jornalista.

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