Visita ao Setor de Documentação e Arquivo revela presença de escravizados em Piracicaba desde a fundação da cidade
A obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira e Indígena” nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, é definida pela lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Em Piracicaba, os diretores, supervisores e coordenadores das 125 unidades escolares da rede municipal passam por um processo de formação continuada da Rede Municipal de Educação e Educação das Relações Étnico-Raciais.
Uma das etapas da formação continuada é a visita a espaços em Piracicaba onde há registros da história e cultura afro-brasileira e indígena. A Câmara Municipal de Piracicaba faz parte desse roteiro itinerante. A coordenadora da formação continuada, Marilda Aparecida Soares, destaca que o acervo do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo da Câmara é “extremamente importante”, por trazer uma documentação que justifica tanto as falas quanto os escritos sobre a história da cidade de Piracicaba.
“Quando nós fazemos uma reflexão sobre o que foi a história do processo de formação social de Piracicaba, nós nos remetemos a documentos específicos, a comprovações, e boa parte dessas comprovações está aqui no acervo da Câmara, como também no acervo do Museu Prudente, e às vezes em espaços que não são de documentos físicos, mas são espaços de memória, como aqueles que nós vemos no Rotas Afro”, declarou a coordenadora da formação continuada na área de Educação Étnico-racial.
Na visita guiada ao Setor de Documentação, os gestores (diretores, supervisores e coordenadores) acompanham o funcionamento do setor e têm acesso a documentos produzidos e recebidos pela Câmara. Um dos documentos apresentados é o primeiro livro de atas da Câmara, contendo a ata da primeira sessão, realizada no dia 11/08/1822.
A arquivista Giovanna Calabria, chefe do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo, destaca que apesar de a Câmara não ter “história de tudo”, há registros a partir de um ponto específico. “São histórias escritas pelos vereadores, querendo ou não. Se pensarmos no passado, uma classe dominante, de uma classe específica, que tinha intenções específicas. Então não está tudo aqui. Tem muita entrelinha, tem muito silêncio”, afirmou.
Após a visita pelas dependências do setor, recortes da história são apresentados ao grupo de visitantes. A arquivista relata que sempre começa com a parte mais pesada, desmitificando a história de memória, já que memória nostálgica não é benéfica, pois as pessoas esquecem a parte ruim.
“A história é um pouco mais cruel, o documento é cruel, é literal, e eu começo a desmistificar algumas coisas criadas pela memória”, explicou.
O primeiro ponto a ser desmitificado é que Piracicaba não teve escravizados. Giovanna Calabria destaca que os documentos já mostram o contrário, que houve muitos escravizados.
São apresentados documentos que comprovam a presença de escravizados em Piracicaba. Por exemplo, o primeiro tributo municipal, datado de 12 de agosto de 1822, foi uma taxação sobre escravos machos acima de sete anos, evidenciando a crueldade dessa prática.
Outro ponto abordado é a existência e o uso do Pelourinho, com documentos que confirmam sua utilização para punir escravizados e libertos. A arquivista também menciona a forca em Piracicaba, documentada como instrumento de execução.
Um caso específico é o de Benedicta, uma escravizada cuja história é fragmentada e marcada pelo apagamento. Sem sobrenome, Benedicta representa muitos escravizados cuja história completa jamais será conhecida devido à falta de registros ou à destruição deliberada deles. Seu caso, documentado como um processo-crime, exemplifica as dificuldades em reconstruir a história dos escravizados.
“Essa primeira parte é sobre entender o passado, vislumbrar o passado, para tentar entender algumas consequências no futuro. Não deixar esquecer. É um choque, mas às vezes um choque necessário que temos que trazer”, afirmou Giovanna Calabria.
Na segunda parte da apresentação, é abordada a importância do Clube 13 de Maio. Um documento específico sobre o Carnaval é apresentado, mostrando como tentaram, de alguma forma, retirar as verbas do evento. Foi o clube que conseguiu, com muita pressão, manter o Carnaval em Piracicaba.
Também é apresentada a história de Ditinha Penezzi, que em 1965 se tornou a primeira mulher eleita na Câmara de Piracicaba. Além de ser a primeira mulher, ela também foi a primeira pessoa negra eleita na cidade.
A chefe do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo ressaltou a importância de ler documentos de várias fontes. “Ler um documento não revela uma verdade completa. Você está lendo a versão de alguém, que tinha uma intenção, estava num contexto e queria alguma coisa. Esse alguém pertence a uma classe social específica. É outro jeito de ler o documento”, explicou.
A visita é encerrada na frente da Câmara, no Marco Histórico da Cultura Negra.