- Amor é tarde
(Relendo o poeta uruguaio Mário Benedetti).
No escritório, atrás da mesa, sou eu quem pelas manhãs protocola as incertezas. Entre carimbos tediosos, selos cotidianos e colas seculares, despacho razões, oficio decepções, contabilizo tristezas.
Às três da tarde, entoo vésperas ao atendente que vem trazer o café, e ele – que mal sabe quem sou e a quem mal sei quem é – arregala o olhos em espanto ante o canto burocrático e doloroso que vocalizo sem ter fé.
Às quatro, o arquivo metálico, recostado à parede, me chama em amores. Meus olhos-diário-oficial veem sua poesia derradeira desfolhar-se inteira, página a página, em memorandos empilhados nas prateleiras.
Ao fim do expediente, o sangue, cheirando à tinta das esferográficas, quer aquecer-se em efeito quando as horas aproximam-se da seis e me sinto pronto para a noite como um cartão torto furado à força pelo relógio ponto.
Chave na porta do coração, giro dentro de mim minha desilusão de gabinete a me lembrar renitente que não tenho, no expediente do existir, os amores, as mulheres e vida de Mário Benedetti.
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Às Três
Talvez a pior hora do dia seja a da escrita – cadente, pendente aflita, tentativa por um triz de ser de repente feliz. Tristeza. A pior hora do dia é com certeza a da escrita sobre a mesa – errante, rente retesando na mente a experiência ausente da felicidade que sempre se quis. (As árvores, os sonhos, os deuses, os adeuses, os sem deuses, os motores, os amores, os meninos e as meninas, entre todos, entre tudo, se vão pelos vãos – mudos – das retas, das letras, verso a verso, sem linha, sem precisão). A pior hora do dia é, com certeza, a da criação. Instante dêitico divino místico – ato contínuo feito, somente, de ilusão.
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Alexandre Bragion é cronista deste matutino desde 2017 – e entra em breve recesso por aqui até o começo do mês de agosto