O caso da Boyes e a perda de patrimônios brasileiros

Letícia Tucunduva

Quanto mais o tempo passa, mais eu me dou conta da degradabilidade das coisas: são os furos que aparecem nas roupas, as teias de aranha que se formam nos cantinhos da casa e meu carro velho que está sempre quebrando. Na cidade, o cenário não parece muito diferente: as lojas fecham, as ruas se enchem de buracos e a tinta descasca das paredes dos prédios do centro. Coisas que na minha infância pareciam imutáveis, hoje se transformam tão rapidamente que nem tenho tempo de prestar atenção.

Apesar desse processo parecer inevitável, uma luta perdida contra a natureza das coisas, há situações em que a degradação é mais resultado do descaso, da falta de cuidado e até de uma decisão deliberada de “deixar estragar”, do que propriamente da ação do tempo. Esse me parece ser o caso da Boyes e de tantos outros patrimônios histórico-culturais brasileiros.  Estamos cansados de ver casos de museus que pegam fogo, acervos perdidos por falta de manutenção, prédios históricos demolidos, vendidos, descaracterizados.

Quando olhamos o caso da Boyes em isolado, pode parecer só um terreno. Para que fazer tanto alarde pela venda de um único terreno, há anos abandonado, com uma construção caindo aos pedaços? Não seria melhor vender logo – esse dinheiro entra para a prefeitura – nem que seja para construir uns prédios residenciais? A verdade é que, em um contexto mais amplo, não é só um terreno. A venda da Boyes faz parte de um processo histórico de perda de patrimônios culturais e espaços públicos, que, ao fim, dá origem a um povo cada vez mais sem história, sem memória e sem lugar.

Certamente, ninguém deseja manter a Boyes abandonada da forma que está. Essa luta é pela transformação da antiga fábrica em um espaço coletivo e público que beneficie não somente aqueles que terão dinheiro para comprar o terreno – ou o que quer que seja erguido sobre ele – mas sim toda a população da cidade.

Nesse ponto, não queria precisar comentar a questão ambiental, pois me parece absolutamente óbvia a necessidade de preservar a margem dos rios, ainda mais considerando que a área da Rua do Porto é um uma região alagável e que sua vegetação já não está em seu melhor estado de conservação. Estamos há anos falando dos impactos que as mudanças climáticas terão sobre as áreas urbanas e da urgente necessidade de tomar medidas de adaptação e mitigação, que tornem as cidades espaços mais resilientes. Necessidade essa que parece ter sido escancarada com a tragédia que atravessou boa parte do Rio Grande do Sul nos últimos meses.

Nesse sentido, Piracicaba, como um centro de tecnologia e de pesquisa e lar de diversas universidades, tinha a oportunidade de se tornar uma cidade exemplo, uma cidade modelo, mas parece ter escolhido degradar o rio que dá nome a própria cidade e que, em última instância, valoriza o terreno da Boyes e todo o seu entorno.

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Letícia Tucunduva, engenheira agrônoma, mestranda em Fitotecnia pela Esalq-USP

 

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