João Cândido, Almirante Negro, sim!

José Maria Teixeira

Não há como contestar ou repudiar o caráter emblemático do fato ocorrido na Marinha Brasileira em 1910 e para o qual se busca hoje, ainda que tardiamente, não atribuir, mas reconhecer, sim, o heroísmo que em alto grau revestiu a Revolta da Chibata, representado pelo protagonismo inconteste do  então marinheiro negro João Cândido Filisberto.

O projeto que ora propõe a inclusão do nome de  João Cândido, negro, líder da Revolta da Chibata, no livro de Heróis e Heroinas da Pátria,  a desplante de quem quer que seja, configura, sim, a oportunidade impar à Marinha Brasileira de reconhecer publicamente que errou ao adotar protocolos inadequados para com os marujos quando possivelmente falhos no cumprimento de suas funções, alem de se penitenciar das condições desumanas em que eram mantidos.

Na última semana, o comandante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, apresentou posicionamento contrário à inclusão do nome  de João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria da corporação por, segundo ele, “enaltecer um heroísmo infundado” ao reconhecer uma liderança que se insurgiu a partir do papel que exercia na corporação.

Por esta manifestação contra o projeto, o comandante recebeu críticas ácidas de diversos setores da sociedade. Porém, críticas não suficientes para aclarar-lhe a mente levando-o a aceitar o projeto. É estranho que nem mesmo a louvaçao da cultura popular de há tempos cantada em verso, de Norte ao Sul, do Leste ao Oeste do País, fazendo justiça, conseguiu mostrar a este comandante  a magnitude do negro Joao Candido Filisberto, simples marinheiro, consagrado pelos seus feitos e sanha: “Salve o Almirante negro. Que tem por monumento  as pedras pisadas do cais”.  Composição: João Bosco e Aldir Blanc. Toma-se aqui a liberdade dos leitores transcrevendo na integra a letra desta composição naturalmente emprestado da memória o acompanhamento musical assim desfrutando mais da glória de Joao Candido Filisberto, o almirante negro.

 

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“Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu

Conhecido como navegante negro
Tinha dignidade de um mestre sala
E ao acenar pelo mar na alegria das regatas
Foi saudado no porto, pelas mocinhas francesas

Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
Dos santos entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
E a exemplo do feiticeiro gritava então

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o navegante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais”

 

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Pois bem. Não se esperava de um comandante da Marinha Brasileira, nos dias atuais, diante de tal propositura ao Congresso Nacional, um posicionamento inconsequente. Mesmo porque não compete à nobre instituição criar ou anular lei.  Atingido pela crítica ao falar de heroísmo infundado, sem as devidas ressalvas, sente-se ofendido.

Segundo a mídia, o jornal o Globo 30/04/24, Marcos Sampaio Olsen, mais raivoso, voltou a público, defendendo o veto à inclusão do nome do líder da Revolta da Chibata no Livro dos Herois e Heroínas da Pátria.  Desta vez, porém, defendendo-se de conotação pessoal que ele trouxe à baila negando racismo e firmando-se isento de viés ideológico.

Aqui, mais uma vez, requer a licença dos leitores para traçar na integra a justificação do projeto de  lei que propõe a inclusão do nome de João Candido no Livro dos Herois e Heroínas da Pátria. Para entender o que é e quem incorpora heroísmo em seu agir. Saber quem foi João Candido Filisberto, sua origem, seu caráter, sua dignidade. Saber que homens formavam o coletivo dos marujos, sua cultura. Saber de que códigos se extraíram os protocolos da disciplina. Saber como era seu habitat naquelas embarcações, sua alimentação, sua saúde. Isso tudo porque aqueles homens, marujos, demandavam como demandam hoje respeito para com sua dignidade razão da batalha denominada “Revolta da Chibata”.

JUSTIFICAÇÃO — A História de um país não é feita apenas com a ação de grandes homens e mulheres, geralmente ligados aos segmentos dominantes da sociedade ou ao poder político (chefes de estado, políticos, monarcas, militares, entre outros), mas se tece, também, no cotidiano das relações sociais e das lutas políticas. Esta proposição legislativa vai nessa última direção ao propor que seja inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, depositado no Panteão Nacional, na capital da República, o nome de João Cândido Felisberto, marinheiro e líder de um dos movimentos sociais mais importantes da Primeira República, a Revolta da Chibata (1910), conhecida também como “Revolta dos Marinheiros”. Mas o que foi esse movimento social, muitas vezes omitido das páginas de nossos livros que se pautam por uma história oficial? Revoltados com a alimentação estragada, os trabalhos pesados e com a humilhação dos castigos corporais, os marinheiros brasileiros se revoltaram na madrugada de 22 para 23 de novembro de 1910. Na época, a Marinha de Guerra brasileira estava dentre as mais fortes do mundo. Já o tratamento dos marinheiros repetia as piores tradições: de um lado, da própria escravidão brasileira e, de outro, de diferentes esquadras (a começar pela inglesa), que faziam da chibata um hábito cotidiano. João Cândido Felisberto, gaúcho, filho de escravos, liderou a revolta pela dignidade humana em nossa Marinha de Guerra e em nosso País. Duvidava-se que marinheiros semianalfabetos conseguissem manobrar uma das mais potentes esquadras do mundo. João Cândido não apenas realizou tal feito, como ainda o fez de maneira perfeita, do ponto de vista da guerra naval. Daí que o título de “Almirante Negro” lhe caia perfeitamente. Sob o seu comando, em resposta ao castigo do marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes com 250 chibatadas ao rufar de tambores, amotinam-se as tripulações dos encouraçados Minas Gerais e São Paulo, levando à execução de alguns oficiais, após renhida luta. Apoiam o movimento os cruzadores Barroso e Bahia. Mais de dois mil homens participam. Bombardeia-se a cidade do Rio de Janeiro, que é mantida durante cinco dias sob os canhões dos revoltosos. O ultimato enviado ao Presidente da República, Hermes da Fonseca, representa um marco na luta pela dignidade de nosso povo: “Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira, a falta de proteção que a Pátria nos dá, e até então não nos chegou, rompemos o véu negro, que nos cobria aos olhos do enganado e patriótico povo. Achando-se todos os navios em nosso poder, tendo a seu bordo prisioneiros todos os oficiais. Reformar o código imoral e vergonhoso que nos rege, a fim de que desapareça a chibata, o bolo, e outros castigos semelhantes; aumentar o nosso soldo, educar os marinheiros que não têm competência para vestir a orgulhosa farda. Tem, V.Exª, o prazo de 12 horas para mandar-nos a resposta satisfatória sob pena de ver a pátria aniquilada. (assinado) Marinheiros”.

Por tudo isso, da memória popular aos anais da História do Brasil, Estado Democrático de Direito, João Candido Felisberto, sem nenhum favor “Almirante negro”, sim.

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José Maria Teixeira, professor

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