Covardia e vergonha policialescas

Cecílio Elias Netto

 

Não resisto a lembrar-me a mim mesmo: sou, realmente, de outro tempo. De outra época. E de outro mundo. Não se trata de medíocre e mesquinho saudosismo. Mas, com certeza, de certa nostalgia, de lembranças que se tornavam indeléveis em nossas vidas, as dos vividos em anos mais humanos.

Um exemplo: as cidades conviviam com seus policiais de maneira afável. Admirando-os. Neles, confiando. Eram recebidos em nossas casas para um cafezinho, um lanche. Ouviam reivindicações e, por vezes, ajudavam a equacionar até questiúnculas familiares. Como esquecermo-nos do Cabo Júlio, do Cabo Trevisan? E o respeito que tínhamos para com o Delegado de Polícia? Era o protetor da comunidade. Ele e o juiz tinham até poltronas permanentemente reservadas nos cinemas da cidade. As pessoas idosas recebiam atenções mais gentis. As crianças brincavam nas ruas e cada vizinho cuidava delas como se fossem de suas próprias famílias. O nome disso – mesmo, ou especialmente, em tempos de mais decência – era civilidade.

E não me venham falar de outros tempos, de mudanças radicais. O mundo está, como nunca acontecera antes, submetido a pequenos grupos controladores. Quando se sabe que apenas seis pessoas – seis pessoas, não entidades ou instituições, empresas – controlam um terço das riquezas mundiais, eis aí a prova de sistemas corruptos, injustos e inaceitáveis. No entanto, as raízes humanas permanecem as mesmas. Há as chamadas “regras de ouro” que atravessam milênios. Uma delas, que foi repetida por Jesus e não inventada: “Não fazer ao outro o que não deseja seja feito para você mesmo.”  Perguntemos, pois, àqueles policiais covardes: gostariam, eles, de suas famílias serem humilhadas, de suas casas serem invadidas como – usando fardas ameaçadoras – fizeram com lares humildes? Fariam o mesmo com residências requintadas? O mesmo, fariam com pessoas brancas?

Simplesmente punir recolhendo-os para serviços burocráticos, nada mais é do que um lastimável e, rimando, também insuportável “esprit de corps”. Que, aliás, enfrenta e desafia toda e qualquer estrutura democrática. E o comandante dos agressores? Basta-lhe uma providência burocrática, como se os seus violentos subordinados nada tivessem feito a não ser descumprir uma normazinha interna? Ou eles, os infratores, estariam, na verdade, agindo a partir de uma mesma mentalidade fascitóide que devastou o país nos últimos anos e, ainda, sobrevive? O governador do Estado já não falou que pouco se importa com coisas semelhantes? “Não tô nem aí” – disse.

Foi-se a época em que “usar farda” era um falso direito para violar a legalidade. Se Piracicaba se esqueceu ou não sabe do ocorrido nesta terra durante a ditadura – com o terror mantido pela polícia através de um investigador, o Lazinho – este velho jornalista mantém viva tal horrenda memória. O perigo – como se advertira – foi, realmente, “o guarda da esquina”. Àquela época, o tráfico de entorpecentes inundou a cidade. Os cidadãos ficaram indefesos e surgiram extorsões, chantagens promovidas por setores policiais. Prostitutas foram forçadas a induzir os, então, frequentadores do prostíbulo local a se tornarem usuários de drogas. Enfrentar, jornalisticamente, toda aquela situação tornou-se imperativo de altíssimo risco. Mas a ditadura caiu e Piracicaba venceu.

Infelizmente, 60 anos depois daquela tragédia nacional, vemos – aturdidos e indignados – policiais revelando-se saudosos filhotes da tirania. Se o Governador do Estado “não tá nem aí”, Piracicaba há que ficar alerta.  E protestar, assegurando: “Nunca Mais”.

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Cecílio Elias Netto, escritor, jornalista, decano da imprensa piracicabana

 

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