Minha casa agora está aberta, com seus quadros e quartos ventilados de memória, seus corredores tão meus, meus eus sentados à mesa do café e a minha falta de fé em tudo o que na vida foi construído: amores destelhados, desejos revestidos de cimento, culpas alicerçando o sobrado.
Sem chaves, a minha casa burguesa se abre assim discreta. Meus móveis sob lençóis empoeirados assentam cuidados mais a guardar do que a esconder, revelando contornos sem planta-baixa explícita – disponível, porém, dentro do armário para quem quiser ver.
Minha casa acomoda contrastes, é claro, e abriga quereres e objetos pessoais dois mais discretos aos irreais – e não oculta por fim mais nada, nada mais, após anos erguida na calçada da vida da rua que não volta atrás.
No reboco, oco, sentimentos de cal e tinta vermelho sangue revestem a minha casa. Em seu assoalho ressentido o viver e o vivido estalam à noite a madeira dos meus ais. À mostra, deixo os meus códigos e sinais, meus símbolos duros esculpidos nesta casca de ostra que habito e que me serve, às vezes, de parede, às vezes de muro, outras de infinito.
Quem entra em minha casa vê a um canto da sala um piano desafinado que diz a todos o que eu não fiz, mas deveria ter feito. Quem entra por ela, vê que por dentro a minha casa nada tem de direita nem de direito: as panelas estão sobre a pia, as almofadas pelo chão, as roupas adormecem na cama em plena e constante desarrumação.
Sempre à esquerda – em dimensão política e social – avista-se logo em minha casa o meu quintal de esperanças coberto de folhas secas, meus jardins de gramas em sonho sempre por cortar, um oratório para quem não sabe rezar, portarretratos de medos, salas de anseios, cômodos sem segredos.
Pode-se andar por dentro de minha casa como quem cruza uma avenida de uma cidade do interior à noite. Há luzes para se ver. Há movimento lento. Há restaurantes abertos quase por fechar. Há vitrines no centro vendendo razões falsas de ser, de existir e de acreditar.
Por isso, reforço e insisto – aproveitem a ocasião. Minha casa agora é deleite que se abre em exposição e surge no espaço como uma astronave de aço que cai ou como uma ave que se entrega a um algoz.
Sim. Minha casa está aberta para o pouso de novas jornadas. Deve ser porque é outono – apesar do calor de fazer suar os desejos. E eu, que não sou Drummond, te pergunto (também sem qualquer interesse em sua resposta): trouxestes a chave?
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Alê Bragion é cronista deste matutino desde 2017