Quaresmeiras ao vento     

Camilo Irineu Quartarollo

 

Os evangelhos narram o Jesus penitente pelo deserto. Viria a calhar a proposta de transformar pedras ressequidas em pães, sugerida ao faminto pelo tentador. A solidão é o lugar deserto onde surgem demônios que não querem repartir nada, mas somente usufruir. Inda hoje, o que se pretende de Jesus é que ele seja um gênio da garrafa. Usou, lavou e guardou.

A páscoa católica coincide com a floração das quaresmeiras, as quais têm flores em tons vivos ao violeta e rosa, e ao de roxo das vestes litúrgicas. Aliás, da natureza vêm as festas e liturgias religiosas. Sexta-feira santa, do roxo nas igrejas, bacalhau com batata na mesa rica, o sacrifício no arrocho de pobres sem commodities.

Entretanto, Jesus não é gênio mágico, nem hippie, mas um rabino e judeu humanista – desses que jamais jogariam mísseis sobre seus vizinhos. O grande pecado atual e coletivo aparece nessa guerra contra Gaza e vai dividir, não unir o povo da antiga aliança, o qual, de longa trajetória deserta ainda não chegou à terra prometida, a da paz. Contudo, a querem? Até jornalistas reticentes e judeus da diáspora reconhecem o óbvio desse genocídio do povo palestino.

Entretanto, ainda há uma cegueira geral no mundo. Iludem-se com falsas razões e desculpas sórdidas para aceitar o genocídio do povo palestino, cujos corpos são considerados simplesmente escudos humanos a pretexto de uma defesa sionista.

O diabo desse deserto somos nós mesmos, os “perfeitos”, “deuses pequenos”, dando uma pedra e querendo um pão por mágica bondosa.

As pedras servem para muitas coisas, mas os pães vêm dos trigais, mutirões ou partilha comunitária.

A guerra está na África, Síria, Iraque, Líbano e mais cruelmente em Gaza, testando armamentos letais contra a população civil no último bastião em Rafah. O capitalismo vive de dinheiro e isso se faz com armas, guerras e mortos. Armas deixaram de ser meios de defesa para se transformar em produto de alta eficiência e valor de mercado. Mortos “dos outros” não afligem essas “almas bondosas e famílias de bem” que lucram muito, que podem até fingir condolências numa sexta-feira da Paixão.

Tantas crueldades e os cristãos fazem suas penitências de preceitos quaresmais, deixam de cortar a barba, não comem picanha, entretanto fazem um silêncio abismal, de medo, contra à injustiça de povos indefesos.

Nesta quaresma, os Judeus pela Democracia e a Articulação Judaica de Esquerda, os próprios judeus, protestaram pelas atitudes de Ronaldo Caiado e de Tarcísio de Freitas pelo “papelão” na viagem ao Estado de Israel, posto que alheios e silentes à dor das famílias palestinas. Caiado fez ainda de rogado num pedido abjeto de desculpas pela fala óbvia e clarividente de Lula contra o genocídio, cujo mundo livre repercute, inclusive a ONU.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, ensaísta, autor de crônicas, historietas, artigos e livros, como o Contos inacreditáveis da Vida adulta

 

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