Uma obra fundamental para entender o tráfico negreiro

 

 

Armando Alexandre dos Santos

Prosseguimos nesta semana a análise de uma importante obra para se entender o que foi o tráfico negreiro no Oceano Atlântico, que teve trágicas consequências para o Brasil. Refiro-me ao livro “A África e os Africanos na formação do mundo atlântico – 1400-1800”, de John Thornton (Rio de Janeiro: Elsevier, 2004).

Antes de passar à apresentação da obra, gostaria de, preliminarmente, fazer notar que sua tradução, feita por Marisa Rocha Maia, foi, conforme reconhece o expediente do volume, copidescada por outra pessoa, de nome Ivone Teixeira. Os tradutores já são, de acordo com o velho dito italiano, traidores (Traduttore traditore). Quando às traições voluntárias ou involuntárias de um tradutor ainda se acrescem as de um copydesker, que não tem como meta explícita a fidelidade ao original, mas somente a legibilidade do texto pelos leitores, pode-se dizer que as traições se multiplicam… Daí só pode resultar, como no caso em tela, uma obra muito mal traduzida.

De fato, é baixo o nível dessa tradução. Esse juízo, não o formulo com autoridade própria, porque meu inglês é bastante precário e não tenho, por isso, segurança e competência para avaliar uma tradução feita a partir desse idioma. Expresso-o porque notei, na leitura do texto, numerosas situações de mal-estar, em que meu senso habituado a traduzir de outros idiomas sentiu-se eriçado, vislumbrando falhas que, na verdade, somente alguém mais versado no inglês poderia confirmar ou infirmar.

Também outras pessoas versadas no idioma de Chaucer e Shakespeare com quem conversei acerca do livro, me afirmaram ser a tradução da Elsevier muito deficiente. Assim, caso alguém que leia estas linhas necessite fazer uma pesquisa mais cuidadosa da obra de Thornton, sugiro que a leia no original ou, talvez, em outra tradução mais bem feita, para outra língua que conheça.

Passemos agora à especificidade de Thornton.

Thornton é claramente discípulo de Fernand Braudel, dele recebendo o conceito de uma História integrada pelo mar. Assim como Braudel estudou a civilização mediterrânea, em suas várias interfaces e numa perspectiva de larguíssima duração, diversos discípulos seus se lançaram com empenho, embora não tão profundamente como o mestre, a estudar a civilização atlântica. Estudaram, nessa perspectiva, as migrações ocorridas no âmbito atlântico, da Europa para a América e da África para a América. Mas, influenciados pelo eurocentrismo, privilegiaram notavelmente as migrações Europa-América, em detrimento da proveniente da África.

Curiosamente, observa Thornton, os historiadores em geral parecem não se ter dado conta de que, numericamente, até o século XIX entraram mais africanos do que europeus na América. A certa altura do século XIX as coisas mudaram de figura, porque foi proibida a importação de escravos e teve início a corrente migratória maciça de europeus (especialmente italianos e irlandeses) para a América do Norte, e análogas correntes ocorreram também na América do Sul, sobretudo no Brasil e na Argentina. Mas, até meados do século XIX, mais africanos entraram na América do que Europeus. Daí a finalidade do livro de Thornton: resgatar a importância dessa migração africana tão pouco tomada em consideração.

Ainda outro aspecto precisa ser considerado. Até meados dos anos 60 do século passado, prevalecendo o eurocentrismo, o foco dos estudos era considerar a Europa como portadora da sua civilização, levando-a a povos primitivos. Nessa perspectiva, competia a tais povos se inspirarem nos modelos culturais e mesmo políticos dos povos europeus, adaptando-se a eles. Era esse o inelutável caminho do progresso, que, em velocidades diferentes, haveria de conduzir todos os povos da terra para um mesmo estágio superior de desenvolvimento e plenitude humana.

Como explicável reação contra essa visão eurocêntrica, acentuou-se, na África e nas Américas uma tendência historiográfica de considerar os malefícios exploradores do colonialismo europeu. O papel da África, concretamente, teria sido o de perpétua vítima. Essa visão nacionalista, favorecida e incentivada também por correntes de esquerda, insistia muito nessa “vitimização” da África, perpétua presa da “diabolizada” Europa.

A finalidade que se propõe Thornton tem muito de síntese marxista, diante da tese eurocêntrica e de sua antítese “vitimista”. Mostra que a África participou ativamente, muito mais do que se imagina, do comércio escravagista. Não somente esse comércio era prática inviscerada no continente negro, desde tempos imemoriais, mas muitos potentados viram, no interesse subitamente demonstrado pelos europeus na mercadoria humana, uma excelente oportunidade de fazer negócios.

Vejamos como Thornton problematiza o tema central de seu livro:

“Este livro procura deslindar diversas posições contraditórias. É correto ver a África em um estágio de desenvolvimento inferior do que a Europa e esse desequilíbrio como causa do comércio de escravos? Os africanos participaram do comércio no Atlântico como parceiros em condições iguais, ou eles foram vítimas do poder e da ambição da Europa? Os escravos africanos foram tão brutalizados na América a ponto de não poderem se expressar culturalmente e socialmente e, assim, em que grau seus antecedentes específicos foram importantes na formação da cultura afro-americana? Em geral, a conclusão da pesquisa na qual este livro se baseou apoia a ideia de que os africanos foram participantes ativos no mundo atlântico, tanto no comércio africano (inclusive no comércio de escravos) quanto como escravos no Novo Mundo” (op. cit., p. 47-48).

Como salienta Thornton, parecia haver certo equilíbrio de forças, entre os navegadores europeus e os potentados locais. “Os africanos tinham um firme controle sobre o destino do seu continente”, afirma ele (p. 46).

 

 

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

 

Frase a destacar: Os historiadores em geral parecem não se ter dado conta de que, numericamente, até o século XIX entraram mais africanos do que europeus na América.

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