As noites

Sergio Oliveira Moraes

Parodio Anna Kariênina de Tolstói: “Todas as noites felizes se parecem, cada noite infeliz é infeliz à sua maneira” – para falar de noites que não se parecem. E começo pela noite do voto do ex-deputado federal, depois presidente, pelo impedimento da então presidente Dilma Roussef. Que seja, respirar fundo, que seja!

O pronunciamento, dedicando o voto a seu herói, um torturador, anunciou a longa noite que se seguiria. E eu não consigo compreender que “se deixe de lado” (João 3:16) que nos conta que Jesus é o Filho Unigênito de Deus, e com ele a interpretação que todos somos filhos de Deus, por fazermos parte do corpo de Jesus, e que portanto tudo o que for feito a qualquer parte desse corpo é a Jesus, a Deus que se estende. E, aceita essa interpretação, como compreender que se eleja, que se idolatre quem elogia torturador, aquele que fere o Filho Unigênito?

Como compreender que se ignore a regra de ouro das religiões, contundente em Mateus (7:12): “Tudo quanto quiserdes que vos façam as pessoas, assim fazei vós a elas. Pois esta é a lei e os profetas” (na tradução de Frederico Lourenço). E Jesus, que também foi torturado e morto, não “deixa espaço” para exceções: essa é toda a lei de Moisés e dos profetas. Então, como não me entristecer com a opção por aquele que tem um torturador por herói? E, por favor, perdoem as inquietações de um pretencioso e ignorante não crente, apaixonado pelos textos sagrados.

Voltemos, busquemos um dia na longa noite que se seguiu ao golpe de 1964, um local de tortura, uma mãe, Amelinha, sendo torturada, o corpo coberto de hematomas, vomitada e urinada. O coronel, o “herói”, mandou trazer-lhe os filhos, Janaína de 5 anos e Edson, 4, para que o pai e a mãe soubessem que ele tinha as crianças em seu poder. Na sala de torturas, diante da mãe amarrada na “cadeira do dragão”, a menina perguntou: – Mamãe, porque você está azul?” (https://www.extraclasse.org.br/opiniao/colunistas/2018/08/por-que-voce-esta-azul-mamae/). Esse que levou as crianças para ver a mãe torturada, esse é o herói daquele que na noite do dia 2/3, por estas bandas, homenageou-se. Um herói que usou crianças para mostrar sua dominação absoluta sobrecorpos e mentes da mãe, do pai ou do que deles restava.

Na noite em que se votou pela homenagem ao que tem por herói um torturador, duas mulheres, as vereadoras Rai e Sílvia,disseram NÃO à concessão do título de cidadania. Agradeço a atitude de vocês pela importância para a democracia, mas – e sobretudo – pela vida,sem a hipocrisia da indignação seletiva.Rai e Silvia, muito obrigado!

Mas noites infelizes trazem os que chegam com a noite, roubando-a dos poetas, dos seresteiros, dos namorados, das crianças. Trazem os que odeiam as mulheres fortes, que lutam, e então precisam ser enfraquecidas, submetidas, dominadas, silenciadas, e aí uma mensagem por “e-mail”, ameaças de tortura e

E porque que sou limitado para escrever, temo cair nos clichês, simplificando meu respeito e admiração por você, seu trabalho, Rai. Creio ser melhor concluir por aqui, com minha solidariedade e um forte abraço.

______

Sergio Oliveira Moraes, físico e professor aposentado Esalq/USP

 

 

 

 

 

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima