Uma obra fundamental para entender o tráfico negreiro

Armando Alexandre dos Santos

 

Uma obra que sempre recomendo aos meus alunos, para o estudo do tráfico negreiro que tanta importância (e tão trágicas consequências) teve para o Brasil, é “A África e os Africanos na formação do mundo atlântico – 1400-1800”, de John Thornton (Rio de Janeiro: Elsevier, 2004).

John K. Thornton nasceu em 1949, numa família de militares norte-americanos e foi educado na Universidade de Michigan, onde se graduou, em 1971, e na Universidade da California, onde se doutorou em 1979. É irmão da conhecida literata Betsy Thornton, autora de novelas e romances de larga divulgação.

De formação marxista, se bem que com a atenção voltada para os aspectos culturais, Thornton aplicou-se ao estudo da África, mais precisamente concentrando no antigo Reino do Congo o foco principal de suas pesquisas. O artigo “Demografia e História no Reino do Congo” (1977) deu início a suas publicações sobre o tema. Desenvolveu as próprias ideias sobre o mesmo assunto na sua tese de doutorado, intitulada “O Reino do Congo – Guerra Civil e Transição – 1641-1718”, publicada em 1983. Nessa tese, estudou a fundo o problema da escravidão no interior da África (num enfoque, note-se, bastante diverso daquele que têm os estudiosos da escravidão dos africanos levados para outros continentes). A ideia de Thornton era de que a centralização do poderoso Reino do Congo resultara de uma maciça concentração de escravos, que trabalhavam nas plantações que circundavam a capital do mesmo reino. Tal concentração deu-se no século XVII e foi a causa mais atuante do poderio congolês que impressionou fortemente os portugueses, que com ele mantiveram relações diplomáticas em bases paritárias, relações essas cortadas, de quando em vez, por períodos de guerras. Chamou também a atenção de Thornton a persistente sucessão de guerras civis ocorridas na região, ao longo do século XVII, o que mostrava, de um lado, não ser tão estável e pacífica como parecia a hegemonia congolesa, e, de outro, a necessidade de guerras como meio de obtenção de novos escravos.

O segundo livro de Thornton, que corresponde precisamente à primeira parte do que agora estou comentando, foi “Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1650” (Cambridge University Press, 1992). A segunda edição desse livro, publicada em 1998, estendeu o período estudado até 1800. Nessa obra, mostrou que, contrariamente ao que se pensava, o poderio dos reinos africanos era considerável e forçava os europeus a manterem com eles relações diplomáticas e comerciais em bases quase paritárias. Isso, em termos concretos, significava que o comércio de escravos era ativamente (e não apenas passivamente) incrementado pelos potentados africanos, que em considerável medida ditavam normas às quais tinham que se ater os mercadores europeus. Compreender isso e expor essa realidade, nisso consistiu a grande especificidade de Thornton. Foi isso que fez, de seu livro, um clássico.

Na segunda parte do livro, desenvolvida na sua segunda edição, Thornton estendeu o campo de observação e análise para o continente americano, mostrando como nele interagiram, na cultura, nos costumes, nas práticas religiosas, os escravos de origem africana. Aí também notou ele uma participação muito mais ativa e menos passiva do que geralmente é admitido pelo comum dos analistas. Distinguiu a primeira geração de escravos instalados na América, nos quais a presença do que chamava “sensibilidade africana” estava mais viva, das gerações subsequentes, nas quais elementos sintéticos (e também, sem querer fazer jogo de palavras, sincréticos) se faziam notar. Analisou manifestações artísticas, em especial a música, culturalmente muito importante para uma população iletrada. Analisou a linguagem e a religiosidade.

Analisou também rebeliões escravas na América e, surpreendentemente, procurou raízes africanas nessas rebeliões. Em outras palavras, procurou nelas traços de divisões tribais e étnicas já presentes, anteriormente, no continente negro. Até mesmo nas táticas militares adotadas pelos haitianos, na sua famosa revolta, ele julgou encontrar remotas revivescências de conflitos africanos. É pena – comento eu – que não tenhamos historiadores capacitados a fazer análoga investigação em profundidade sobre Palmares, e que aqui entre nós ainda se prefira divulgar, nas escolas, uma versão inteiramente fantasiosa e ideologicamente construída do quilombo palmarino.

Posteriormente, publicou ainda outros livros, além de numerosos artigos em que abordou, especificamente, aspectos particulares das temáticas mais amplas tratadas nos livros. Alguns de seus livros principais:

– The Kingdom of Kongo: Civil War and Transition, 1641-1718 (Madison: University of Wisconsin Press, 1983);

– Africa and Africans in the Formation of the Atlantic World, 1400-1680 (New York and London: Cambridge University Press, 1992, segunda edição ampliada, 1998). Tradução para o português: África e Africanos na Formação do Mundo Atlântico, 1400-1800 (Rio de Janeiro: Estampa, 2004);

– The Kongolese Saint Anthony. Dona Beatriz Kimpa Vita and the Antonian Movement, 1684-1706 (Cambridge University Press, 1998)

– Warfare in Atlantic Africa, 1500-1800 (University College of London Press/Routledge, 1999)

– Central Africans, Atlantic Creoles and the Foundation of the Americas, 1585-1660—obra publicada a quatro mãos, com sua colaboradora Linda Heywood (Cambridge University Press, 2007)

Na vida acadêmica, Thornton destacou-se como professor de História nas Universidades de Boston, da Virginia e da Zâmbia. Realizou também inúmeras exposições especializadas em cultura africana, em vários países. É consultor, em matéria de História da África, da Enciclopédia Britânica.

Continuaremos na próxima semana, expondo e analisando as ideias de Thornton.

 

 

 

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

Frase a destacar: Thornton estendeu o campo de observação e análise para o continente americano, mostrando como nele interagiram, na cultura, nos costumes, nas práticas religiosas, os escravos de origem africana.

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