Luzes e sombras no Medievo europeu

Armando Alexandre dos Santos

 

Fiz o antigo curso ginasial na década de 1960, quando, de um modo geral, a maioria dos professores ainda repetia os velhos chavões de “Idade das trevas”, “longa noite de mil anos”, “tirania obscurantista da Igreja Católica” etc. etc.

Na Europa, sobretudo na França (mas também em outros países), isso já estava de há muito superado, mas infelizmente as novas orientações culturais só costumam chegar às universidades brasileiras com 30 ou 40 anos de atraso.

Como dizia, ainda tive professores que repetiam os velhos chavões, mas ao mesmo tempo, como eu gostava de ler muito, fui tendo acesso a uma outra interpretação do Medievo, também um tanto unilateral e criticável por vários lados: a visão romântica do século XIX.

A leitura de autores como Walter Scott (quem não se lembra do Ivanhoé?), e mais tarde de Alexandre Herculano (O Monge de Cister, O Bobo, Eurico o Presbítero, Lendas e Narrativas) e Victor Hugo (Nossa Senhora de Paris, com seu famoso corcunda de Notre-Dame), me abriram a visão para outros aspectos da questão. E, nesses autores, que eram, por muitos lados críticos até injustos da Igreja, comecei a me interessar pela Idade Média, vendo nela uma época extraordinariamente fecunda e atraente, cheia de ensinamento e motivos de aprofundamento.

Sempre gostei dos romances históricos de bom quilate, retratos fiéis de época e frutos de estudo e pesquisa. Esse é um gênero que durante muito tempo foi considerado um gênero menor, desprezado e pouco cotado nos meios acadêmicos, mas nas últimas décadas ele vem sendo justamente reabilitado.

Outras leituras me abriram os horizontes sobre a Idade Média, quando eu ainda era adolescente. Li também muito sobre as Canções de Gesta e a Cavalaria, devorei os vários volumes da “História das Cruzadas”, de J. F. Michaud. Vi também numerosos filmes de época, com El-Cid, Robin Hood e Guilherme Tell como personagens. E li muito sobre a Idade Média portuguesa, especialmente sobre a parte final dela, já na dinastia de Avis, com os livros da inglesa Elaine Sanceau.

Tudo isso, aliado ao meu modo de ser individual de criticar e questionar o que me dizem e ensinam (nunca fui muito popular entre meus professores…) me fez abrir os olhos e ver uma outra realidade, que fui formando aos poucos. Fui também muito influenciado pela leitura de textos de orientação católica e também de historiadores isentos como a incomparável Régine Pernoud e Gustave Cohen.

A Idade Média foi uma época muito conturbada e cheia de percalços, com sombras, sim, mas com muita luz. Um dos livros mais famosos de Régine Pernoud foi precisamente “A luz da Idade Média” (La lumière du Moyen Âge), e Gustave Cohen escreveu “A grande claridade da Idade Média (La grande clarté du Moyen Âge). Foi uma época em que, na expressão do Papa Leão XIII, “a filosofia do Evangelho governava os estados”. Muitas das críticas à Idade Média eram puro preconceito anticatólico. A Idade Média foi, na realidade, uma tentativa, imperfeita e inacabada, de um estado de coisas ideal do ponto de vista da Igreja Católica. Foi a influência da Igreja que suavizou, num lento processo pedagógico e pastoral, a rudeza dos bárbaros, que extinguiu quase completamente a escravidão (que só reapareceria com nova força na Renascença), que transformou o caráter das monarquias antigas, submetendo os monarcas, até então absolutos, a uma ordenação superior de caráter moral etc. etc.

Foi também a Igreja que conservou, nos monastérios, inúmeros tesouros da Antiguidade, que reinterpretou e reaplicou os ensinamentos universais de Platão e Aristóteles, que criou as primeiras Universidades etc. etc. Inúmeras cidades foram fundadas em torno de mosteiros, em toda a Europa, precisamente pelos benefícios que deles fluíam para as populações vizinhas.

A Igreja tem duas vertentes, a divina e a humana. No lado humano, é claro que houve falhas, houve crimes, houve muita coisa a lamentar, até mesmo em Papas. Mas não se esqueça o outro lado.

Falei de Régine Pernoud, uma autora muito fecunda que principiou seus estudos com publicações sobre história econômica da Idade Média, depois ampliou o âmbito de seu foco em três livros famosos (A Luz da Idade Média, A Beleza da Idade Média, Idade Média: ponto final). O primeiro e o terceiro são facilmente encontráveis em português. Ela estudou muito também o processo de Santa Joana d´Arc e, a partir daí, aprofundou a pesquisa sobre a condição feminina da Idade Média, que era muito diferente do que se supõe. Houve grandes pensadoras, literatas e mulheres em atividades de governo na Idade Média, dentro e fora de conventos. Jacques Le Goff chega a afirmar que, proporcionalmente, havia mais mulheres medievais governando estados soberanos, do que mulheres presidentes de república ou primeiras-ministras na segunda metade do século XX. Não se pode dizer que as mulheres fossem especialmente discriminadas na Idade Média, mais do que em outras épocas históricas.

Concluo este artigo com a transcrição de um texto muito expressivo de Gustave Cohen, medievalista professor da Sorbonne e judeu convertido ao catolicismo, no seu citado livro “La grande clarté du Moyen Âge”:

“Se quisermos pôr em relevo o traço essencial da Idade Média ocidental, ele se caracteriza pela fé, e pela fé cristã. A Idade Média inteira é dominada pela fé cristã, e isso vale tanto para o mais humilde como para o mais sábio dos homens. Exatamente como, no século XIX ou no século XX, todo homem, mesmo religioso, é fixado pela ideia da lei da Ciência, e pelo princípio de causalidade, o que implica uma crença numa ordem natural, o medieval parte dos dados da fé e pensa e age em função desses dados e no contexto deles. As abadias, sobretudo, as Escolas Capitulares e, desde o início do século XIII, as Universidades, oferecem às pessoas atraídas para o exercício do pensamento especulativo e a busca do conhecimento, um asilo calmo, ao abrigo das necessidades materiais que as embaraçariam, e das guerras, que as perturbariam. Já se falou, mas jamais se falará suficientemente, do muito que fizeram os grandes mosteiros do Ocidente para a conservação da literatura antiga, que teriam podido deixar perecer como portadoras de um espírito pagão. Uma filosofia fundada na Revelação e tendo como mestre e inspirador um filósofo excluído da Revelação, uma cultura fundada na fé e que reconhece como mestres e educadores filósofos antigos que não tiveram fé, esse é o grande paradoxo da cultura medieval.” (Éditions de la Maison Française, Nova York, 1943, p. 20-24).

 

 

 

 

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Armando Alexandre dos Santos, Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia  Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba

 

 

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