Um texto clássico de Alexandre Herculano, para ser lido consultando um bom dicionário

 

Armando Alexandre dos Santos

 

Já é hora de concluirmos nossa série de artigos sobre o trabalho nos burgos medievais, realizados no âmbito das corporações de ofício. Vamos fechá-lo com chave de ouro, com um texto clássico do romancista e historiador português Alexandre Herculano (1810-1877), que descreveu, em O Monge de Cister, uma procissão de Corpus Christi realizada em Lisboa, no início do século XV, durante o reinado de D. João I. Em Portugal antigo realizavam-se numerosas procissões ao longo do ano, mas apenas duas eram obrigatórias e ninguém podia, sem justificado motivo de força maior, deixar de participar delas: a procissão do Corpo de Deus, e a procissão do Anjo da Guarda do Reino de Portugal – que tradicionalmente se celebrava no terceiro domingo do mês de julho.

A descrição de Herculano – que não é puramente imaginativa, mas se baseou em pesquisa exaustiva realizada pelo autor em documentos da época – constitui uma peça antológica e é frequentemente citada pelos autores que escrevem sobre o Medievo português.

Transcreveremos a seguir, por seu valor documental, os parágrafos alusivos à participação das corporações de ofícios na procissão de Corpus Christi – que era, como destacou o próprio Herculano, um misto de cerimônia religiosa e representação profana. Muna-se o leitor de um bom dicionário, sem o qual será impossível saborear devidamente toda a beleza do texto. Aí vai ele:

“Mas a procissão começa, enfim, a transpor o escuro portal da Sé; os mesteres e magistrados municipais calaram-se, repotreando-se nos balcões dos paços do concelho forrados de excelentes tecidos de Arrás. O povo, apinhado desde a catedral, pelas Fangas da Padaria abaixo e ao longo da Rua Nova, agita-se, remoinha e vai-se enfileirando aos lados entre as paredes e as duas linhas de postes de madeira precursores dos frades de pedra que ainda em nosso tempo bordavam os passeios dos arruamentos. É que trezentos besteiros de conto da cidade romperam em batedores para franquearem o passo às pompas variadas, ao mesmo tempo religiosas e lúdicas, que constituem a festividade, nacional por excelência, do Corpo de Deus.

“A primeira cena do espetáculo que enlevava as atenções de tantos milhares de olhos representavam-na os almuinheiros ou hortelões de Valverde, de Alvalade (hoje Campo Grande), e de outros sítios ao redor de Lisboa.

“Doze deles conduziam sobre os ombros uma arrazoada máquina de paus e bragais pintados, que representava uma almuinha com os seus alfobres, canteiros, nora, canaviais e hortaliça. Após eles, com insígnias figurativas dos diversos misteres que exercitavam, os vendilhões de pregão, os ganhapães e albardeiros e depois os almocreves e atafoneiros ocupavam um comprido trato da procissão. Seguiam-se os carniceiros em número de vinte e dois, rodeando dois graves máscaras, que representavam um imperador e um rei, cujos ademanes de gravidade e altiveza ridícula e acanhada revelavam bem que eram rei e imperador de um dia. Igual número de tecelões se metiam de permeio entre aqueles simulacros de realeza e os peliteiros, cuja insígnia era um gato montez, chamado o gato paúl. Em seguida dois diabos faziam momices e trejeitos no meio de vinte oleiros, fabricantes de telha e vidreiros, cujo lugar no préstito aquele era. Os merceeiros, vendedores de especiarias e boticários conduziam, logo atrás dos vidreiros, um descomunal gigante, que contrastava com um pequeno anjo, que parecia dirigi-lo. Aquela espécie de Golias excedia em altura quatro torres de madeira, duas das quais pertenciam aos correeiros, e duas aos cortadores. A imediata representação, ordenada pelos sapateiros, mostrava mais arte e despertava, talvez mais que todas as outras, a atenção dos espectadores. Vinha a ser o dragão infernal, sarapintado de vivas cores, que vigiava dois diabos, os quais procuravam induzir dois frades noviços a voltarem aos deleites do mundo, ao que eles mostravam resistir heroicamente, posto que, como de reserva aos dois infernais pregadores, os tosadores acompanhassem dois diabretes espertos, prontos a socorrer os seus discretos colegas. Se, porém, como autores dramáticos os sapateiros levavam imensa vantagem aos mesteirais dos ofícios imediatos no préstito, nem por isso vinte e quatro alfaiates deixavam de pavonear-se após eles ao redor da serpe tentadora da nossa mãe Eva, a que fazia sombra uma torre, solidíssima na aparência. Mas se, pela excelente pintura da sua charola, os alfaiates tinham justos motivos de orgulho, mais justa era a vaidade com que os carpinteiros da Ribeira e os calafates, em número de trinta e oito, arrastavam uma nau e uma galé, armadas e empavezadas de muitas cores, cujos mastros quase que se elevavam à altura dos edifícios, e cujas vergas quase topavam com os balcões e frestas da Padaria e passavam a custo pela Porta-do-Ferro…

“De todos os outros mesteres, cujos membros, em maior ou menor número, ajudavam a tecer aquela enfiada de cenas ridículas ou brutescas, distinguiam-se, pela singularidade das invenções que ostentavam, primeiramente os pedreiros e carpinteiros pelo seu engenho ou máquina de guerra, servida por dois feios demônios, e os armeiros pelo seu sagitário, símbolo do soldado peão, e no meio destas duas corporações os tanoeiros por uma torre grandemente historiada e semelhante à dos correeiros e cortadores. Os moedeiros, corretores, tabeliães e mercadores, como mesteres mais nobres, fechavam aquele extenso séquito.” (HERCULANO, Alexandre. O Monge de Cister ou a época de D. João I., LISBOA: Livraria Bertrand, 23ª edição, s/data, tomo II, p. 82-86)

 

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

Frase a destacar: A procissão de Corpus Christi era, como destacou o próprio Alexandre Herculano, um misto de cerimônia religiosa e representação profana.

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