Engenho Central: o imperativo da verdade histórica

José Machado

 

“O Engenho Central de Piracicaba, fundado em janeiro de 1881 pelo doutor Estêvão Ribeiro de Souza Rezende, o Barão de Rezende, foi administrado pela ‘Societé Sucrerie Bresillienes’ (S.S.B.) de 1907 a 1970, sendo mais tarde adquirido pelas Usinas Brasileiras de Açucar, tendo funcionado até 1974, quando encerrou suas atividades.

Durante 93 anos a indústria açucareira deu vida ao espaço e trouxe riquezas para a região. Após este período, muito do que foi seu patrimônio, se restringiu ao imponente conjunto arquitetônico de inspiração francesa. Em 11 de agosto de 1989 foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Piracicaba (CODEPAC). No mesmo ano, em setembro, foi considerado de utilidade pública. Desde 2005 o Engenho vem sendo restaurado e reformado para se transformar em polo de lazer e cultura. Em 2008, a Administração fez o pagamento da primeira parcela de sua desapropriação, garantindo sua posse definitiva ao povo piracicabano. A população que já nutria profunda empatia pelo Engenho Central, pode considera-lo, definitivamente, seu maior patrimônio histórico, cultural e ambiental. Piracicaba, 1º de agosto de 2009”

Sábado passado, dia 19 de janeiro, fui com minha esposa até a orla do Rio Piracicaba para um passeio, como gostamos de fazer quase semanalmente. O rio estava lindo e a orla apinhada de gente. Atravessamos a Ponte Pênsil e fomos até o Engenho, distraidamente, sem um propósito específico, a não ser curtir o ambiente único e exuberante de nossa terra abençoada. E com esse espírito leve, logo na entrada do Engenho, paramos para observar o pequeno monumento que reproduz um jogo de moendas de cana ao lado dos prédios gêmeos, no qual está instalada uma grande placa de aço nomeando as autoridades constituídas do Poder Executivo e do Poder Legislativo e a equipe de secretários da administração municipal e na qual se inscreve, ao final, a mensagem que transcrevi acima. O monumento é alusivo à celebração do aniversário de Piracicaba em 2009.

Passei a ler silenciosamente a referida mensagem e, no percurso da leitura, um sentimento de incredulidade e de indignação foi tomando conta de mim. Jamais poderia imaginar que se pudesse inscrever  numa instalação pública, por iniciativa de um poder constituído num contexto democrático e republicano, algo tão rebaixado, tão medíocre e tão desonesto, que apequena e envergonha o exercício da Política. A mensagem propositadamente omite e procura minimizar e distorcer fatos relevantes que marcam o processo de desapropriação e ocupação do Engenho Central, no afã de apagar o protagonismo histórico dos governos anteriores, como se tudo de bom, relevante e positivo tivesse sido iniciado em 2005. Vamos ao desmascaramento dessa insidiosa mentira!

Primeiramente, é necessário resgatar um longo histórico de cogitações e iniciativas pioneiras relativas ao Engenho Central, que perpassaram, sobretudo, os governos Adilson Maluf e João Hermann, resgaste este que não pode ser feito no curto espaço deste artigo. Para esse mister, sugiro a leitura de artigo assinado por Dirceu Rother Júnior e por mim (REVISTA DO IHGP Nº 25, 2019), o qual procura oferecer, na visão dos autores, a compreensão de todo o processo conclusivo de tombamento e início da desapropriação e ocupação do Engenho Central. Uma das diretrizes centrais desse referido artigo foi demonstrar que a conquista do Engenho Central não foi obra solitária de um único governo. Outra diretriz foi demonstrar que se em 1989 não houvesse sido tombado e iniciado fulminantemente o processo de desapropriação do Engenho Central, não teria sobrado nada da configuração das edificações para desapropriar e ocupar, pois era iminente a sua destruição total, dada a sanha predatória dos proprietários de então.

Na enganosa mensagem aludida faz-se referência ao tombamento do Engenho Central pelo CODEPAC no dia 11 de agosto de 1989. De fato, essa é a data do tombamento, mas se omite, por ignorância ou má fé, que esse ato foi objeto do Decreto Municipal 5036, assinado pelo Prefeito, eis que ao CODEPAC compete justificar e propor o tombamento, mas não tem a prerrogativa de decidir. Conforme sustenta em artigo o saudoso Professor Almir de Souza Maia (REVISTA DO IHGP Nº 20, 2013), o CODEPAC decide abrir o processo de tombamento do Engenho Central (juntamente com o Parque do Mirante e o Parque da Rua do Porto) em 1982. Repito: 1982! Há sete anos, portanto, se arrastava e não se decidia pelo tombamento do Engenho Central e foi graças à determinação do governo municipal em 1989, combinadamente com o CODEPAC, e mirando o Engenho isoladamente, que essa questão foi resolvida em definitivo, de modo fulminante e emblemático e não por acaso.

A mensagem enganosa da placa faz referência à declaração de utilidade pública do Engenho em setembro de 1989, ato contínuo, portanto, ao tombamento, mas o faz sem explicitar que esse ato foi objeto do Decreto Municipal 5043, assinado pelo Prefeito de então, e que é o primeiro passo legal indispensável para a desapropriação do Engenho. Cabe lembrar que o Decreto de Utilidade Pública tem validade por 5 anos e se nesse interregno nada for feito no processo desapropriatório ele se torna nulo.

A mensagem enganosa e tendenciosa da placa afirma que a primeira parcela para o pagamento da desapropriação se deu em 2008, o que é uma mentira grosseira pois omite que a Lei 3077, de 7 de novembro de 1989, aprovada pela Câmara Municipal, definiu verba de 250.000 cruzados novos (algo próximo a 1 milhão de reais hoje) para ser depositada em juízo como pagamento da primeira parcela desapropriatória. Foi o depósito dessa parcela que tornou possível, em conformidade com a legislação que rege o processo desapropriatório, a imissão de posse do Engenho em favor do Poder Público Municipal, concedida pelo Juiz Octávio Helene Junior na data de 10 de novembro de 1989.

Três atos emblemáticos, portanto: tombamento, declaração de utilidade público e imissão de posse. Se não tivessem sido realizados em 1989, jamais, provavelmente, teria sido possível conquistar o Engenho Central para o povo piracicabano. Isso é irretorquível!

Por fim, a mais escandalosa das mentiras inscrita na placa: a de que “…desde 2005 o Engenho vem sendo restaurado e reformado para se transformar em polo de lazer e cultura”, dando a entender que tudo que se fez antes foi um rol de quimeras.

Essa informação enganosa presta-se a negar que:

O Engenho Central foi entregue ao povo de Piracicaba no dia 1º maio de 1990, Dia do Trabalho, em ato que contou, entre outras atividades, com a entrega de plaquinhas de madeira celebrativas aos que trabalharam naquela fábrica e com a execução do Hino de Piracicaba pela Orquestra de Câmara da Escola de Música, regida pelo maestro Ernest Mahle. Uma placa de bronze alusiva ao ato foi afixada no chaminé da fábrica e a pergunta que não quer calar é: ainda permanece lá? É de se duvidar!

Providências foram tomadas ao longo desse ano de 1990, com vistas a viabilizar a visitação e a realização de atividades culturais, assim como a transferência para lá da sede da Secretaria Municipal de Cultura e de um posto avançado da Guarda Civil Municipal, a partir de então. Foi nesse contexto que se decidiu também pela transferência da Festa das Nações para o Engenho Central, o que somente se tornou possível graças a obras importantes como rede de energia elétrica, abastecimento de água e destinação de esgotos, construção de sanitários públicos, adequação do terreno para circulação de pedestres, instalação de condições básicas para a o funcionamento das cozinhas pelas entidades beneficentes participantes, e assim por diante.

A primeira Festa das Nações realizada no Engenho Central ocorreu em 1991 e foi um estrondoso sucesso, que se repetiu desde então até os dias atuais.

A partir desse ano de 1991 (e não somente a partir de 2005!) inúmeros outros eventos culturais e científicos passaram a ocorrer no Engenho Central até os dias que correm, configurando-o como um polo cultural de excelência, dos quais me vêm imediatamente à memória, sem recorrer a registros, os shows de Jorge Ben Jor e Adriana Calcanhoto; as plenárias do Consórcio e do Comitê PCJ; o Simpósio de Tecnologia, que contou com a presença do Ministro Roberto Rodrigues; o Salão de Humor, com sua tradicional exposição anual, cuja sede passou a ser no Engenho; as plenárias do Orçamento Participativo; a Conferência Nacional das Guardas Civis Municipais; a Conferência Municipal de Cultura, que contou com a presença do Ministro Gilberto Gil, enfim, uma lista interminável.

No dia 20 de dezembro de 1992, último ano do meu governo, inaugurei a Ponte Pênsil, que foi construída para facilitar o acesso do publico ao Engenho, num ambiente de desfrute inigualável da paisagem emoldurada pelo Salto do Rio Piracicaba. A Ponte Pênsil pode também ser considerada um ardil para impedir que governos posteriores desistissem da desapropriação, como, de fato, veio a ser cogitada.

Ao abordar a Ponte Pênsil, denuncio outra manobra sórdida, destinada a esconder dos turistas e dos jovens piracicabanos a autoria dessa obra, eis que a placa inaugurativa foi maliciosamente virada para dificultar o acesso a essa informação. Em compensação, outra gestão administrativa inaugurou outra placa para celebrar a realização de reparos na ponte! Lá naquelas bandas do Engenho ficou assim: cada tábua substituída ou lâmpada trocada tem suscitado inauguração e placa!

Concluo essa longa exposição esclarecendo que em nenhum momento deflagrei um debate para gerar controvérsia inútil e muito menos para menosprezar realizações de outros governos em relação ao Engenho Central, as quais sempre reconheci como importantes dentro do processo histórico. Sempre tive claro que ninguém singularmente é dono do Engenho Central, pois ele pertence ao povo de Piracicaba.

Escrevi o presente artigo 15 anos depois da inauguração do referido monumento porque não me ocorreu anteriormente, por mera distração, ler os dizeres da placa. Antes tarde do que nunca!

Escrevi para desmontar mentiras e omissões sobre a conquista do Engenho Central que estão expostas numa mensagem pública inserida numa placa comemorativa. Reconheço, por outro lado, que não há espaço numa única placa para se contar a história verdadeira, contudo, o que se constata no presente caso é inaceitável.

Escrevi para defender o meu legado para Piracicaba, o qual, por menor que seja, muito me orgulha. Se não o defender, quem o fará?

Com a palavra a mídia, os historiadores, o CODEPAC e a opinião pública em geral.

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José Machado (PT), ex-prefeito, ex-deputado federal

 

 

 

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