Na mesma praça…   

Camilo Irineu Quartarollo

 

Léo Canhoto compôs em 1983 ‘O último julgamento’, em que Jesus está sentado num banco junto com o ser humano.

Ainda na pandemia, o padre Júlio Lancelotti se muniu de máscara cirúrgica e marreta, se enfronhou sob um viaduto paulista na árdua tarefa de quebrar os blocos que impediam a presença humana no lugar. Ali viviam antes várias famílias sem moradias. Nesse dia dois de fevereiro de 2021, padre Júlio se mostra um homem intransigente quando se trata de justiça social, aliás, de que vale a justiça se não for social?!

Em 21 de dezembro de 2022 foi aprovada a lei contra a arquitetura hostil ou lei padre Júlio, Lei 14489/22, que proíbe a ‘aporofobia’, ou seja, a rejeição aos pobres por meio de construções impeditivas de abrigar pessoas desprotegidas de intempéries, sombra ou mera passagem, tais como grades nos perímetros de praças e gramados, bancos de metal com divisórias de lancetas, bancos ondulados ou cilíndrico para não se recostar, lanças em muretas baixas, barras horizontais em cantos de prédios ou lojas, pedras em áreas livres ou pinos pontiagudos sob marquises.

São lugares transitórios, abrigos improvisados, onde os empobrecidos possam se aninhar como as aves do céu ou se encolher como as raposas desse deserto inurbano. Por certo, essa arquitetura inóspita também fere o direito consagrado pela Constituição, o de ir e vir com seus bens em tempo de paz, mas acrescento com seus animais de estimação, pois lar é universo afetivo.

Entretanto, esse traço urbano do pe. Júlio é expressão de sua ação de fé e presença no mundo como sacerdote de Jesus e sua lei maior: o amor. Aos poucos o reconhecemos de avental, mas também um teólogo de autoridade. Não é possível se estagnar numa teologia de doutores, de eminências, ritualista. Deus não está numa bolha piedosa das religiões nem se faz um padre pelo uso da batina e cursos exaustivos de filosofia, mas junto aos mais vulneráveis.

O trabalho do pe. Júlio é exposto ao perigo, ao relento, sem reclinar sua cabeça em travesseiros de penas, mas seus detratores se ocultam atrás de formalidades, gabinetes e viadutos.

De todos os perigos as pessoas de rua não amedrontam o sacerdote, mas os que usam black-tie e invejam a sua popularidade e êxito na vocação de servir. Pe. Júlio nos ensina que o milagre, que pensávamos ser um passe divino de mágica não é. O milagre não é a multiplicação, é a partilha! É o maná que vai estragar amanhã, se não dividirmos hoje. Deus ‘não dá sopa pra ninguém’, mas o fubá, a água, os legumes, o fogo e a alegria da mesa comum.

Nos templos bíblicos a hospitalidade era um mandamento, anotado na tradição. Dizia que recebendo estranhos muitos receberam a anjos, como o próprio Abrahão. Muitos dos que desprezamos, inclusive pela correria diária, podem ser nossos próprios anjos que não podem se sentar, se alimentar, usufruir de uma sombra ou noite sob uma marquise.

Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, ensaísta, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

 

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