O trabalho urbano na Idade Média: as corporações de ofício

Armando Alexandre dos Santos

Vimos, nos últimos artigos, como era o trabalho rural, na Idade Média. Passaremos agora a tratar do trabalho urbano, no mesmo período histórico. Vamos focalizar especialmente as corporações de ofício, entidades que tiveram enorme importância na vida dos burgos medievais e, assim como o próprio feudalismo, exprimem bem a mentalidade prevalente no período. O feudalismo se constituiu antes, e teve como resultado natural – e não como produto de uma extemporânea e anacrônica luta de classes – o incremento dos burgos. Tanto o feudalismo como as corporações de ofício eram resultado natural e orgânico de uma sociedade profundamente sacralizada e refletiam, em suas práticas, em seus regulamentos, em seus rituais simbólicos a dimensão sagrada da vida medieval.

À medida que se iam naturalmente constituindo aglomerações populacionais nos burgos, também de modo natural ali se foram associando os trabalhadores de um mesmo ofício, constituindo corporações que os protegessem e que garantissem suas famílias na ocorrência de doenças, mortes prematuras ou alguma outra calamidade do gênero. As corporações de ofício se relacionavam muito intimamente com a instituição familiar; eram algo tão natural como esta, não eram resultado de planejamentos artificiais, mas brotavam das próprias circunstâncias e necessidades da vida. Régine Pernoud destaca bem esse caráter familiar das corporações:

“Não poderíamos definir melhor a corporação medieval do que vendo nela uma organização familiar aplicada ao ofício. Ela é o agrupamento, num organismo único, de todos os elementos de um determinado ofício: patrões, operários, aprendizes estão reunidos, não sob uma autoridade dada, mas em virtude dessa solidariedade que nasce naturalmente do exercício de uma mesma indústria. É, como a família, uma associação natural; não emana do Estado nem do rei. Quando o rei São Luís IX manda Étienne Boileau redigir o Livre des Métiers [Livro dos Mesteres], não é senão para redigir por escrito os usos já existentes, sobre os quais não intervém a sua autoridade. O único papel do rei face à corporação, como de todas as instituições de direito privado, é controlar a aplicação leal dos costumes em vigor; como a família, como a Universidade, a corporação medieval é um corpo livre, que não conhece outras leis senão as que ela própria forjou: é essa a sua característica essencial, que conservará até ao fim do século xv.” (Luz sobre a Idade Média. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997, p. 58-60)

Nas corporações de ofício as relações eram hierarquizadas, não porém à maneira de patrões e empregados, como atualmente se pratica e se entende no meio empresarial. Nelas, conviviam unidos, no mesmo ambiente de trabalho, mestres, oficiais e aprendizes. Todos trabalhavam juntos nas mesmas oficinas e tomavam refeições à mesma mesa. O profissional mais graduado de um ofício qualquer (por exemplo, um sapateiro, um tecelão, um marceneiro) era denominado mestre de sua profissão. Ele iniciara a vida, ainda menino, trabalhando como aprendiz na oficina de outro mestre; depois de algum tempo de aprendizado, ascendera à condição de oficial (ou “servente de ofício), ou seja, aquele que já dominava a prática da profissão, mas ainda não possuía condições de se estabelecer por conta própria; mais tarde, quando conseguiu realizar sozinho uma grande obra da sua área, sua “obra prima” (assim chamada por ser a primeira), fiscalizado e examinado por uma junta de mestres da profissão, recebeu o título de mestre e adquiriu o direito de abrir um estabelecimento próprio, no qual passou a formar novos aprendizes e novos oficiais.

As relações do mestre com seus oficiais e aprendizes não eram – insista-se nesse ponto fundamental – relações de um patrão com seus empregados, mas eram de cunho familiar. Os próprios mestres tinham o costume de mandar seus filhos para serem aprendizes no estabelecimento de outros colegas, e assim se fortaleciam vínculos de sociabilidade e se intercambiavam experiências e técnicas. Também era normal que jovens aprendizes e oficiais acabassem se casando com filhas do mestre junto ao qual trabalhavam.

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

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