PORQUE AMANHÃ É SABADO – Drummond e o Natal às Avessas

O Papai Noel drummondiano é aquele que entra pela porta dos fundos todo mês de dezembro no delicioso poema “Papai Noel às Avessas”. Nele, Drummond dá vida a um Papai Noel que nada traz de material para as crianças. Pelo contrário, o brasileiríssimo Noel às avessas de Drummond aproveita a visita às casas para fazer uma boquinha e “levar” alguns objetos embora. Revela o poema: “Papai Noel entrou pela porta dos fundos (no Brasil as chaminés não são praticáveis), entrou cauteloso que nem marido depois da farra. Tateando na escuridão torceu o comutador e a eletricidade bateu nas coisas resignadas, coisas que continuavam coisas no mistério do Natal. Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos, achou um queijo e comeu. Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender. Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças (no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada) e avançou pelo corredor branco de luar. Aquele quarto é o das crianças. Papai  entrou compenetrado…”

Lindíssimo. O bem brasileiro Papai Noel de Drummond é lírico e talvez sonhador. Ao ver as crianças dormindo, não as acorda. É hábil o bastante para circular pela casa em extremo silêncio, colhendo os sonhos das crianças e “recolhendo” delas os presentes que – deixados por outros papais – repousam dentro dos sapatos colocados nas janelas. Seu grande lenço vermelho (bem vermelho) abriga quem sabe o desejo de um mundo melhor. Nesse lenço, Papai guarda deliberadamente o desejo de mudança – e faz soldados, mulheres, navios e até um presidente da república de celulóide (ou seria melhor dizer um ex-presidente?) irmanarem-se e igualarem-se no mesmo plano, no mesmo pano: “os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos, mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos soldados mulheres elefantes navios e um presidente de república de celulóide. Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo no interminável lenço vermelho de alcobaça. Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do aperto…”

Depois, no mistério do existir, o Papai Noel de Drummond se evadiu sob a beleza do luar, da vida e da natureza. Mágico, levou consigo um mundo – misturando os sonhos, os medos, os problemas e a coletividade. Para sempre (assim se espera, é Natal, vibremos positividade!) levou até mesmo o tal (ex)presidente da república feito de celuloide. Papai Noel é sábio, oras! Sabe que nenhum presidente da república pode ser feito de mentiras, feito da matéria cruel do que é postiço, do que é falso, do que é meramente decorativo e violento. Sonhando novos natais e um novo tempo, Papai partiu sem deixar nada material, mas levou consigo – entre desejos e ilusões – alguns dos símbolos do impedimento de um mundo melhor (enquanto lá fora um galo anunciava o nascimento de Cristo: “Os pequenos continuavam dormindo. Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo. Papai Noel voltou de manso para a cozinha, apagou a luz, saiu pela porta dos fundos. Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.”).

Escrito em 1930, publicado em “Alguma Poesia”, primeiro livro de poemas de Drummond, o “Papai Noel às Avessas” drummondiano parece ainda tão vivo e tão lindo. E talvez, como tudo por aqui é às avessas, nos anuncie também hoje (na aurora de um novo tempo) a ambição sublime de nos encher ainda da esperança que nos faz acreditar em tempos mais belos e nos ponha (também ainda) “sonhando outros natais muito mais lindos”.

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Alexandre Bragion é cronista desta Tribuna desde 2017

 

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