Eduardo Dalcanale Martini
Estevam Vanale Otero
Fabio Guimarães Rolim
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Mais um artigo sobre o empreendimento “Boulevard Boyes”. Para dar nova luz ao caso, façamos um raciocínio hipotético e em sentido inverso: e se a quadra da antiga fábrica fosse pública e a Prefeitura quisesse construir quatro torres de noventa metros de altura para habitações de interesse social?
Poderia o Poder Público simplesmente rasgar o compromisso de preservação daquele conjunto que, com outros exemplares nas margens do Piracicaba, compõe um quadro vivo e rico da memória da cidade?
Sigamos a hipótese. Supondo que, mesmo diante da vigência de Tombamento (Decreto nº 10.643/2004) a Prefeitura obtivesse condições para seu empreendimento, convenientemente amparada em muletas legais vindas de subsequentes alterações de índices construtivos e um vergonhoso relatório do conselho municipal de patrimônio cultural. Parece estranho, mas digamos que isso acontecesse e a Prefeitura insistisse em sua intenção.
Ocorreria, então, de a sociedade se opor ao empreendimento com justificativas perfeitamente cabíveis, mesmo diante da indiscutível importância do uso (habitação de interesse social), do dinheiro investido e dos empregos gerados durante a construção.
É fácil imaginar que esta resistência social não precisaria de matiz ideológica, viés político ou contraposição de grupos de interesse, pois envolveria a compreensão coletiva de quando determinadas situações ultrapassam, em muito, o limite do razoável, é o caso de, pura e simplesmente, dizer “não”.
Uma oposição a tal empreendimento teria menos a ver com eventuais ganhos temporários e pontuais e muito mais com as incalculáveis e permanentes perdas que a cidade sofreria pela drástica deterioração de seu Patrimônio Cultural e pela abertura de precedentes naquilo que é, nada menos, a imagem oficial da cidade: o salto do rio Piracicaba e sua paisagem envoltória.
Novas unidades habitacionais, investimentos, empregos, podem ser gerados em diversos locais, e a cidade os possui para tanto. Mas Piracicaba possui também seu Patrimônio Cultural, e da mais alta qualidade, nesse trecho à beira rio. E esse patrimônio não se constrói de uma hora para outra.
Num país pouco afeito à memória e identidade, às suas raízes, às suas paisagens, poucas cidades podem se orgulhar de possuir um patrimônio riquíssimo de forma tão inequívoca e concentrada como temos nessas margens centrais do rio Piracicaba.
E o sucesso desta preservação não foi fruto de poucas ações, não se deveu a poucos personagens e governos. Foi e é o resultado de um processo que começou de forma lenta e independente, mas foi progressivamente amadurecendo e sendo compreendido por toda a sociedade que hoje sabe ser importante sua memória e identidade à beira-rio.
Embora possa ser garantida e estimulada por instrumentos legais, a preservação do Patrimônio também se dá (e este é um caso) por meio do reconhecimento social, da valorização e do fortalecimento da identificação da cidade com seus símbolos mais bem acabados, com sua alma.
Resumindo: não se trata de ser contra ou a favor de novas edificações, só por serem novas; de ser contra ou a favor de um determinado uso (habitacional, comercial, misto); contra ou a favor da iniciativa privada; do poder público; do empresário X ou Y; do desenvolvimento ou da geração de empregos (alguém aí é contra gerar empregos?).
Trata-se de considerar o Patrimônio Cultural na medida em que ele juridicamente é, ou seja, um direito coletivo, a ser usufruído pelas gerações presentes e futuras para o efetivo senso de pertencimento, da própria origem e história da cidade. E isso só se alcança com respeito ao Patrimônio, com a apropriação de suas qualidades, consideração de suas características pelos projetos de intervenção, convergência entre as possibilidades de uso e de preservação.
Coisas que grandes – e quatro torres – na Boyes não possuem, definitivamente.
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Eduardo Dalcanale Martini, Estevam Vanale Otero e Fabio Guimarães Rolim são arquitetos e urbanistas