O trabalho rural na Idade Média

 

Armando Alexandre dos Santos

Foi somente a partir do ano 1000 que as condições de vida na Europa ensejaram a formação de muitos burgos, para os quais foi sendo atraída uma parcela da população que, até então, vivera em áreas rurais, geralmente gravitando em torno de castelos ou mosteiros. Mesmo depois dessa “urbanização” europeia, continuaram a ter enorme importância cultural, social e econômica as atividades laborais na área rural.

Os manuais didáticos, invariavelmente, costumam dizer que no sistema de produção agrícola medieval havia senhores e servos. Ou seja, em termos simplificados, quem não era dono da terra era servo e trabalhava exclusivamente, ou quase exclusivamente, para quem era o senhor da terra.

Não é bem assim. Como registra a bem conhecida historiadora Régine Pernoud, nessa divisão sumária, “só há lugar para os senhores e para os servos: de um lado a tirania, o arbitrário e os abusos de poder, do outro os miseráveis, sujeitos aos impostos e aos dias de trabalho gratuito, à vontade dos senhores” (Luz sobre a Idade Média. 1997, p. 41). Essa é ideia normalmente formada, quando se fala em trabalho rural na Idade Média, a partir dos livros didáticos correntes.

No entanto, a realidade é bem mais complexa, bem mais matizada. Em primeiro lugar, o direito do senhor sobre o solo não era exatamente o mesmo que se entende hoje como sendo o direito de propriedade privada, gozando o proprietário, de acordo com a fórmula latina consagrada, do “jus utendi, fruendi ac abutendi”, ou seja, o proprietário atual possui plenamente o direito de usar, de fruir e de dispor seus bens. O direito do senhor medieval sobre a terra era de outra natureza. Era muito menos amplo que o do proprietário atual, e comportava ademais uma importante limitação que até certo ponto se poderia chamar, de modo um tanto anacrônico, como preenchimento de uma função social.

Em segundo lugar, os que trabalhavam a terra no Medievo não eram, todos eles, servos. Entre a condição servil e a liberdade absoluta havia múltiplas situações intermediárias. E o servo, diferentemente do escravo antigo, não era desprovido de direitos e com muita facilidade adquiria certo direito sobre o uso da terra, que não lhe podia ser tirada pelo senhor. Bastava ao servo permanecer nela, trabalhando, um ano e um dia, ou seja, o período de um ano inteiro e já adquiria tal direito. Quando decorria esse tempo sem que o senhor da terra o mandasse embora, isso bastava para que o camponês ficar seguro, na posse do direito de não mais ser expulso dali.

Ainda outro aspecto deve ser considerado. Duas eram as fontes do Direito medieval, a Lei Natural e os Costumes. O Direito Consuetudinário, ainda prevalente na Inglaterra e nos países de formação anglo-saxônica, é profundamente diverso do Direito de países como o Brasil atual, no qual prevalece a visão positivista do Direito, de acordo com a qual a fonte do Direito é a lei escrita e devidamente promulgada.

No Direito medieval, eram pouco numerosas as leis formalmente escritas e promulgadas; tomava-se a sério o aforismo latino “plurimae leges, pessima respublica” (em tradução livre: quando são muitas as leis, é péssima a administração pública). O medieval entendia que leis só deviam ser promulgadas em caso de necessidade, nunca de forma arbitrária, ou por mero intuito dirigista.  “A lei deve ser honesta, justa, possível, conforme à natureza, apropriada aos costumes do país, conveniente ao lugar e ao tempo, necessária, útil, claramente expressa para que não se oculte nela nenhum engano, e instituída não para satisfazer a algum interesse privado, mas para a utilidade comum dos cidadãos” – escreveu São Tomás de Aquino na Suma Teológica, repetindo e endossando o ensinamento textual de Santo Isidoro de Sevilha (+ 636). Tão prejudicial pode ser a introdução de uma lei nova, que São Tomás considerava muitas vezes preferível manter uma lei menos perfeita, mas já assentada nos costumes, a substituí-la por uma lei melhor, mas que, por não ter como base o costume, causasse transtornos ao bem comum.

Na Idade Média, em contrapartida, tinham imensa importância os costumes, entendidos como fonte do Direito. Era deles que se deduzia o que devia ser feito e o que não podia ser feito. O fato de determinado procedimento ser praticado costumeiramente em determinado local, não só o legitimava, mas até podia chegar a torná-lo obrigatório. Os costumes mereciam tanto respeito e tinham tanta força, no Medievo, que bastava uma coisa ser praticada costumeiramente para que se impusesse como devendo ser praticada, sem que houvesse necessidade de uma prescrição legal escrita e formal. A única limitação observada nos costumes eram os ditames da Lei Natural. Um costume que não estivesse de acordo com tais ditames, seria um mau costume; em outras palavras, seria um costume vicioso, que deveria ser extirpado; ele não obrigaria nem moralmente, nem juridicamente. Em tais casos, valia o princípio geralmente aceito de que “lex injusta non obligat” – a lei injusta não obriga.

Era imensa a variedade de costumes na organização medieval; isso porque a noção de liberdade também era, no Medievo, incomparavelmente maior do que aquela a que estamos habituados hoje, quando vemos um Estado organizado teoricamente como o grande garantidor das liberdades individuais, mas que, na prática, muitas vezes constitui a maior ameaça a tais liberdades. Exatamente porque havia grande variedade nos costumes, igualmente era muito grande a variedade de situações do camponês diante da terra.

 

 

 

 

Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

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