Patrimônio Mundial? A questão  shakes… piracicabana!

Benedito Tadeu de Oliveira

O Nilo e o Cairo, o Ganges e Calcutá, o Tibre e Roma, o Sena e Paris, o Moscou e a cidade de mesmo nome etc. O rio e a Piracicaba.

As “grandes” cidades surgiram às margens de rios e mantiveram uma relação estreita com eles que lhes ofereciam de tudo.

O Brasil tem uma relação bizarra com seus rios: as cidades os abraçam para crescer e se desenvolver, mas os destroem, ao torná-los meio de escoamento de esgoto. É o caso de São Paulo e o Tietê.

Piracicaba, ao contrário, é uma das poucas cidades brasileiras que não virou totalmente as costas para o “seu rio”. Um trecho do Piracicaba ocupado pela cidade continua sendo um Lugar de Memória paulista. Poucas cidades brasileiras tem o privilégio de oferecer esta interação entre a natureza e a paisagem urbana de forma tão vibrante. Que tal um passeio histórico-cultural para apreciar a beleza paisagística do rio Piracicaba! Na sua margem direita encontra-se a Vila Resende, onde surgiu a cidade, o Parque do Mirante e o Aquário Municipal. Nesse trecho acontece a Piracema e a queda Véu da Noiva. A vista é deslumbrante! E daí surge o Engenho Central – um magnífico conjunto arquitetônico do final do séc. XIX. Na margem esquerda, ocupada a partir de 1784, se encontra o Museu da Água, cujo reservatório foi inaugurado por D. Pedro II em 02/11/1886. De lá, outra vista privilegiada do rio. Descendo o Piracicaba pela sua margem esquerda surge Casa do Povoador, edificação do período colonial e que abriga um museu. Nas suas proximidades está o Marco do Bicentenário da cidade. A rua do Porto constituída de uma arquitetura popular foi habitada por pescadores e operários; abriga um rico patrimônio imaterial: folclores, crenças, ritos e tradições; fruto da interação entre pescadores, imigrantes e negros libertos. Ali acontece desde 1826 a Festa do Divino.

Nas edificações históricas da rua Luiz de Queiroz, que foi habitações de ex-escravos; funciona o Centro de Documentação, Cultura e Política Negra. Ainda na margem esquerda do rio se encontra o Largo dos Pescadores. Lugar de olarias, delas, restam as chaminés e o Casarão do Turismo, que ocupa a antiga Olaria dos Nehring. Acontece no Largo, a noite das tradições, o carnaval de rua e eventos culturais, religiosos e políticos. Abaixo do Largo dos Pescadores um píer para embarque para um circuito fluvial.  E depois tem a rua do Porto. No seu entorno funciona uma feira de artesanatos e um trenzinho turístico, a Maria Fumaça. Tem ainda o Parque da rua do Porto, uma área de lazer de 200 mil m2.  Compõe a encantadora paisagem beira-rio, a antiga fábrica da Boyes, outro símbolo da industrialização brasileira. Nas suas proximidades estão o Palacete Luiz de Queiroz e a Praça da Boyes.

Esse é o trecho do rio Piracicaba mais carregado de história, onde existe uma forte sinergia entre o rio e a cidade, formando um cenário fabuloso, que Arlindo Stefani denominou “O Espírito do Lugar”.

Essa área nobre que guarda significativos valores arqueológicos, histórico, cultural e ambiental – sítio de excepcional beleza paisagística, não poderia ficar desprotegida. Os piracicabanos, protegeram as margens do seu rio por meio de Leis de Proteção Ambientais e Culturais – municipais, estaduais e federais. Foi um grande feito da população, dos seus representantes e das instituições piracicabanas.

A orla do rio Piracicaba com a sua natureza exuberante e a interação da narureza com cotidiano da população piracicabana, “Caminha” no sentido da consolidação de uma Paisagem Cultural nos moldes daquela concebida pela UNESCO como Patrimônio Mundial.

E eis que surge uma “Pedra no Meio do Caminho”, o projeto Boulevar Boyes, que afronta a reconciliação entre o rio e a cidade. Se implantado compromete a Paisagem Cultural piracicabana de forma irreversível e definitiva.

O povo de Piracicaba já se mobilizou e as instituições nacionais de preservação do patrimônio cultural e ambiental vão rejeitar de forma categórica essa insanidade brutal.

 

 

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Benedito Tadeu de Oliveira, arquiteto pela Universidade de Brasília – UnB (1980), doutor em restauração de monumentos pela Universidade de Roma – La Sapienza (1985). É membro do ICOMOS organismo consultor da UNESCO.

 

 

 

 

 

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