Anúncio de um boulevard

Tito Luis Kehl

Os endinheirados de sempre, invariavelmente dispostos a aumentar seus proventos, ressurgem mais uma vez das profundezas de seus cofres abarrotados, e abrem a sua bocarra para se lançar sobre o patrimônio de todos, para torná-lo exclusivo de seus privilégios, como se não houvesse nada sagrado nesse mundo, que não possa ser comprado e destruído pela sanha de lucro e luxo dos mesmos de toda hora.

Não há respeito pelo passado, não há respeito pelas leis da cidade, não há respeito pela res pública.

Não há respeito pelo futuro. Administra-se o futuro ao bel prazer, apondo-se o velho carimbo burguês, excludente e ávido, sobre um espaço que deveria ser democraticamente disponibilizado para toda a população da cidade.

Sob o manto mentiroso da propaganda, alardeiam-se intenções nobres, que são o contrário do que parece.

Assim é que, para cosmetizar o monstrengo e açucarar o estrago, anuncia-se a inauguração de um boulevard, espaço cujo próprio nome francês já denuncia o que está por trás, e esse chumaço de lojinhas é descrito como sendo de acesso à população da cidade…

Mas eu me pergunto, só por curiosidade: quanto custará o cafezinho nessa suposta festa democrática?

O monstro é ainda comparado a outro empreendimento, na capital do Estado, oh!, é claro, mas oculta-se que o tal não-sei-que Matarazzo fica numa região já há décadas verticalizada, onde abantesmas de noventa metros de altura não são novidade.

A propaganda desse Satanás urbano chega ao ponto de mostrar varandas cheias de vasos, para subliminarmente passar a ideia de verde, de natureza, de ecologia, como se samambaia de madame fosse mata ciliar do nosso rio.

Nem vou falar do bem tombado, conspurcado, ou do zoneamento atropelado, ou da paisagem destruída.

Falo apenas do duvidoso direito que tem um grupo minúsculo, apenas apoiado no dinheiro, de se apropriar do que é de todos, e estabelecer sobre a cidade sua assinatura horrorosa, apenas porque ao redor de qualquer mesa reuniram-se meia dúzia de altíssimos salários e decidiram que a partir de agora “aquilo é nosso”, e que se dane todo o resto.

E bombardearão a Boyes, a beira-rio e o salto como se fora alguma zona de guerra, sem medir o estrago, sem olhar o que, nem a quem, para atingir objetivos que em nada conversam com “a cidade”, esse ente eminentemente democrático, que está aí, na sua visão, apenas para ser usurpado, nesse abjeto show do milhão, do qual já conhecemos de antemão os mesmos vencedores de sempre, e os mesmos derrotados.

E a autoridade abana as mãos e dá de ombros, como se não fosse ela a responsável. Numa cidade com tanto a fazer, preza-se mais um cafezinho ao cair da tarde do que, por exemplo, um conjunto de equipamentos esportivos que, isso sim, responderia valorosamente à verdadeira vocação daquele espaço riquíssimo de possibilidades, que, como muitos outros, graças à inépcia da Municipalidade, e à sua visão distorcida de cidade, se encontra abandonado.

 

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Tito Luis Kehl, arquiteto, escritor, trabalha com favelas e comunidades precárias; ex-assessor da Secretaria da Habitação do ESP para urbanização dos chamados Bairros-Cota nas encostas da Serra do Mar

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