Sermões e homilias, ontem e hoje

Armando Alexandre dos Santos

 

Creio já ter comentado, nesta coluna da Tribuna Piracicabana, uma preciosa coleção de livros, opúsculos e manuscritos inéditos, de grande interesse para a História do Brasil, existente no Instituto de Estudos Brasileiros, da USP. Trata-se da “Coleção Lamego”, formada pelo Dr. Alberto Frederico de Morais Lamego (1870-1951). Advogado e fazendeiro muito rico, viveu em sua mocidade em Campos dos Goytacazes-RJ, mas aos 36 anos se transferiu para a Europa, onde passou 14 anos procurando e adquirindo livros, mapas, manuscritos, telas, gravuras e objetos de arte sobre o Brasil. O acervo que conseguiu reunir, com esforço e perseverança, foi assombroso, e lhe permitiu redigir, depois de retornado ao Brasil, obras historiográficas de valor sobre a região Norte do Estado do Rio de Janeiro, que o consagraram como “o historiador da Terra Goytacá” – como lhe chamou Mário de Andrade. Na década de 1930, já sexagenário e receando o que pudesse acontecer com seu espólio post mortem, repassou a parte artística dele (telas e gravuras) ao Governo do Estado do Rio de Janeiro; a biblioteca e o arquivo de documentação primária foi adquirido pela então recém-nascida Universidade de São Paulo, atuando como intermediário nas negociações o referido Mário de Andrade.

Tive ocasião de explorar, no IEB/USP, o sermonário reunido por Lamego, que constitui uma pequena parte de sua biblioteca, com mais de 400 sermões pregados, nos séculos XVII e XVIII, na Bahia e também em Portugal, alguns deles de raridade tal que nem sequer se encontravam catalogados nas melhores obras de bibliografia brasileira. Durante algum tempo, cogitei de fazer meu doutorado sobre esse sermonário reunido por Lamego, mas acabei mudando de rumo e o fiz em outra área.

No período estudado por Lamego, os sermões não tinham a coloquialidade das modernas homilias, mas eram escritos, com extremo cuidado, e lidos do alto do púlpito das igrejas, com inflexões de voz adequadas, de modo a impressionar, comover e mover os ouvintes. Numa época em que espetáculos públicos eram raros, ir assistir a bons pregadores constituía programa cultural bastante apreciado. Os pregadores sacros eram valorizados, admirados e muitas vezes até bem remunerados. Suas melhores produções eram impressas e conservadas com cuidado. Foi nessa mina que Lamego encontrou centenas de sermões que, quando bem analisados, permitem uma compreensão da cultura e da sociedade da época.

Um eclesiástico bem mais próximo de nós no tempo, D. Duarte Leopoldo e Silva (1867-1938), último bispo e primeiro arcebispo de São Paulo, manteve-se fiel ao estilo antigo dos sermões cuidadosamente preparados. Costumava fazer um único sermão por ano, na Semana Santa, e o preparava durante meses. Parecia ter receio de falar demais e, assim, bagatelizar a oratória arquiepiscopal…

Todas essas recordações me vieram ao espírito ao receber um presente de meu querido amigo Padre Matheus de Barros Pigozzo, jovem sacerdote natural de Campinas e atualmente incardinado na Arquidiocese de Niterói, como pároco da cidade de Rio Bonito. Tive o privilégio de conhecer bem o Pe. Matheus, durante um curso que juntos fizemos na Faculdade de São Bento, do Rio de Janeiro, integrando-nos a uma turma notável de colegas extremamente simpáticos, além de inteligentes e participativos.

O presente foi um bem impresso volume intitulado “Diante d´Ele: reflexões espirituais”, publicado em 2022 pela Editora Benedictus. Nesse volume, pude ler com gosto e proveito numerosos textos de sermões proferidos pelo autor, em ocasiões diferentes e abrangendo temáticas religiosas e espirituais a partir de abordagens muito diversificadas e sempre sugestivas.

Não sei se Pe. Matheus redige antecipadamente as suas homilias, ou se as pronuncia de modo livre e depois as recompõe por escrito. Mas o fato é que já publicou cinco livros com alocuções, ricas, piedosas e bem redigidas. É um verdadeiro prazer ler o que escreve. O leitor sai instruído, edificado e estimulado a refletir e questionar os rumos de sua vida. Tudo isso de modo muito natural, com a coloquialidade atualmente requerida e com a linguagem adequada a um eclesiástico de nosso tempo.

Transcrevo, apenas como amostra, trecho de homilia proferida na Basílica de Nossa Senhora Auxiliadora, de Niterói, no dia 20/10/2019, na ocasião em que um recém-ordenado sacerdote estava celebrando sua primeira Missa:

“É inegável a mudança que nossa sociedade tem vivido; de uma cultura que exaltava os laços e valores familiares e a piedade religiosa, passamos para o império do materialismo e da preocupação econômica. A fé muitas vezes é tratada como um mito inadequado. Aquilo que o homem não pode colocar como experimento num tubo de ensaio ou explicar com seus cálculos é tido como um assunto desprezível, irreal. Chegamos em nossa sociedade ao que Bento XVI denomina como `eclipse de Deus´. O homem parece tão cheio de si que não aceita sua condição de finitude, diz ter respostas para tudo, exalta sua independência, mas, de modo curioso, aumenta sua falta de sentido, sua angústia e solidão.

“Na sociedade que expulsou Deus parece não haver espaço para o sacerdote. Parece que muitos admitem a figura do padre somente como uma espécie de psicólogo ou assistente social, mas isso seria reduzir quem o padre é. O sacerdote é incompreensível para a contemporaneidade, pois ele foi ungido para trazer Deus ao mundo! Os sacramentos que celebra, a palavra que prega e seu modo de viver devem ser sinais do Cristo que salva o homem. Nesse contexto, está o celibato: ele deve viver já aqui na terra a condição celeste de ser só de Deus e, desse modo, recordar à sociedade materialista e hedonista que o homem foi feito para um destino eterno.” (op. cit., p. 143-144)

São palavras sábias e perfeitamente atuais!

Concluo recomendando que os leitores deste artigo procurem diretamente o livro do Pe. Matheus. Podem encomendá-lo ao CEDET (Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico) de Campinas, pelo e-mail [email protected], ou pelo telefone 19-3249-0580.

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

Frase a destacar: O homem parece tão cheio de si que não aceita sua condição de finitude, diz ter respostas para tudo, mas, de modo curioso, aumenta sua falta de sentido, sua angústia e solidão.

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