Igreja Bom Jesus – A transfiguração de Cristo no coração do Bairro Alto

Igreja Bom Jesus do Monte foi idealizada em 1857 e inaugurada em 1935. CRÉDITO: Rubens Cardia

 

Documentos preservados na Câmara registram o longo período entre os primeiros pedidos até a construção do templo

 

 

O evangelista Matheus registra, no capítulo 17 de seu livro, que “Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou, em particular a um alto monte”. No versículo 2, continua: “Ali, ele foi transfigurado diante deles. Sua face brilhou como o Sol e suas roupas se tornaram brancas como a luz.”

Lucas também relata o episódio no versículo 29 do capítulo 9: “Enquanto orava, a aparência de seu rosto (de Jesus) se transformou e suas roupas ficaram alvas e resplandecentes como o brilho de um relâmpago.”

Ambos se referem à transfiguração de Jesus Cristo no Monte Tabor, localizado na Galiléia. Segundo as Escrituras, o episódio teria ocorrido dias depois de o Messias explicar aos discípulos as implicações de segui-lo. A iluminação de sua face e corpo simboliza sua natureza transcendental e reforça o significado descrito por outro evangelista, João, o qual o define como “luz do mundo”.

A Igreja de Bom Jesus do Monte reproduz a passagem bíblica tanto nas pinturas internas quanto na arquitetura. O catolicismo fortemente arreigado na comunidade da então Vila Constituição, em meados do Século 19, talvez seja a explicação para que a subida do que é hoje a rua Moraes Barros pudesse ser uma representação do Monte Tabor, com Jesus Cristo resplandecente.

Mas o caminho entre o desejo religioso e a inauguração do edifício foi longo, atravessou décadas entre os Séculos 19 e 20, como registram documentos da Câmara Municipal de Piracicaba, preservados pelo Setor de Gestão de Documentação e Arquivo e, nesta semana, destaque da série Achados do Arquivo, feita em parceria com o Departamento de Comunicação Social.

Doação de terreno – Em meados do Século 19, a cidade já possuía algumas igrejas católicas. Mas em 1857, João Antônio Siqueira doou um terreno com a finalidade de ser criada uma igreja para a população moradora do Bairro Alto. Há informações de que a mesma já havia sido idealizada como Igreja Bom Jesus do Monte e que o nome provém da localização do terreno: nele já existia um largo conhecido com o nome de “Bom Jesus”.

“Compactuando com a necessidade de construção da igreja, os moradores e fiéis recorriam à Câmara com o pedido para início das obras”, relata Caroline Leme Margiota, responsável pela pesquisa dos documentos. “Mas mesmo com as cobranças, as obras levaram tempo para serem iniciadas”, acrescenta.

Somente décadas mais tarde – e com a persistência da população – é que a Câmara registra, em 6 de novembro de 1893, a escolha de Gaspar Fessel e Jacyntho Antenor para tomarem frente e prosseguirem com o pedido de licença à Câmara, feito anteriormente à construção do espaço religioso:

 

“Requerimento de Gaspar Fessel e Jacyntho Antenor da Silva Mello, comissionados pelos moradores das immediações do Largo de São Bom Jesus, pedindo licença para levantar uma Capella em honra daquelle Santo no dito largo. A Commição de Polícia e Hygiene.” (Livro de atas n. 16, 1892-1895, p. 64v)

 

“Para o Gaspar” – Aqui vale um comentário especial sobre a figura de Gaspar Fessel. Além de ser uma das pessoas escolhidas para tomar frente a respeito da cobrança para construção da Igreja de Bom Jesus, era muito conhecido em Piracicaba por ser o zelador do Cemitério da Saudade.

O historiador Maurício Beraldo, coautor de “Somos todos iguais”, relata que, quando havia assumido o cargo, havia 630 sepultamentos no Cemitério da Saudade. “Ao término de sua carreira, havia 20 mil”, relata. Essa persona ficou, então, associada ao falecimento dos piracicabanos, devido ao elevado número de mortos que foram enterrados enquanto se manteve no cargo.

Já o escritor Cecílio Elias Neto rememora: “Gaspar Fessel estava incorporado à cidade como personagem dela mesma, o ‘tipo folclórico’, ou seja, quando se perguntava a quem estava doente “vaes para o Gaspar?”, descreve.

Ter se tornado folcloricamente um “sinônimo” de sepultamento, não diminui o papel fundamental de Gaspar Fessel, que foi um colaborador essencial para as obras da capela que se tornaria a Igreja de Bom Jesus.

Indeferido – Não há informações muito precisas nos documentos encontrados na Câmara, mas houve, no meio do caminho para construção da Igreja Bom Jesus, uma tentativa de alterar posição de sua construção. Apenas um dia antes da pedra fundamental ser fundada no terreno – em 5 de agosto de 1918 –, José Cardoso encaminhou uma correspondência à Câmara, pedindo que a igreja fosse construída com a frente para a rua Moraes Barros:

 

“Requerimento do senhor José de Pereira Cardoso, pedindo para que a Igreja a ser construída no Largo bom Jesus, seja com frente para a rua Moraes Barros – indeferido.” (Livro de atas n. 28, 1917-1921, p. 46)

 

Pedra fundamental – Então, no dia seguinte, em 6 de agosto de 1918 – mais de 60 anos depois da doação do terreno para a construção a Igreja de Bom Jesus – foi lançada a pedra fundamental do que seria apenas um pequeno templo. “De proporções modestas, restringia-se a uma capela mor (o que atualmente é presbitério da igreja), ornada com imagens de Nossa Senhora e João Batista, que levou apenas um ano para ficar pronta”, como registra o Volume 2 do Catálogo da Exposição Itinerante: desenhando o patrimônio cultural de Piracicaba, escrito por Marcelo Cachioni, de 2012.

Outros longos oito anos são esperados pela comunidade, em 1926, até a chegada do padre Mário Montefeltro, para que fosse iniciada a construção do novo edifício, por meio das habilidades de Paulo Nardin, auxiliado pelo construtor Napoleão Belluco e os filhos Antônio e Alfredo.

A inauguração oficial da Igreja, tal qual é hoje, só aconteceria em 1º de maio de 1935, enquanto dirigida pelo padre Martinho Salgot Sors, pároco que permaneceu por 36 anos à frente da Igreja Bom Jesus.

A transfiguração – Decorada por Mario Thomazi, as pinturas do teto da igreja são dedicadas ao renascentista Rafael Sanzio – reconhecido pela perfeição dos desenhos. O pintor teve o cuidado simbólico de realizar as pinturas atrelando a elas referências sujeitas à inspiração do templo: o episódio da transfiguração de Cristo, conforme os evangelhos de Matheus e Lucas.

Do lado de fora, a inspiração bíblica também fica evidente, sobretudo à noite, quando as luzes sobre a imagem do Bom Jesus, instalada no alto da torre da igreja, iluminam sua face “como o Sol” e revelam suas vestes “brancas como a luz”. É a reprodução da transfiguração de Cristo no coração do Bairro Alto.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima