Para não esquecer  

Piracicabano que é piracicabano é que é assim: desmemorioso, desmemoriável – pra gastar aqui umas expressões roseanas que tenho guardadas numa gaveta da escrivaninha. Esquecer o de se lembrar… Parece sinal de nascença – ou “sinar”? – o piracicabano deslembrar do lembrar gostoso dos feitos das gentes da terra, ora se veja. Ou talvez seja política dos velhos caboclos aqui da urbe, cruz-credo, fazer esquecer o povo do que há de bom e bem culturar – e assim passam a boiada (expressão que tá na moda!) em cada caso conduzido não pelo desejo da povarada, mas pelo dinheiro empregado e assistido: que o peixe do “onde o peixe para” já foi há tempos pescado, negociado e vendido. Pode mudar aí, cambada: “Piracicaba, lugar onde o peixe parava” – porque, no lugar, vai ver que agora já tem um sem-fim de predinhos erguidos.

Mas eu já ia me esquecendo, vai vendo pra você ver, do que eu ia mesmo me dizer dos desmemoriados da cidade, que são muitos – e como são! (dá pra se pegar de colher!). E se é preciso esquecer pra se lembrar, como diria um tar de Paul Ricouer, nunca vamos deixar de lembrar também de causos bons dentro dos baús das nossas cabeças perdidos. Então, lavando bem as mãos e os pés para contar história que vale a pena – e se esquecendo, ao mau modo da cidade, o mal que os ditos poderosos nos fazem de verdade –, revoltemos no tempo, revoltosos e idos, e cheguemos à lembrança de piracicabanos doces (mas desmemoriadíssimos). Aproveito que me lembro – ainda. Porque memória virou virtude. Santo Descartes. Lembro, logo existo. Esqueço, logo desisto. Então conto, senão esqueço – como no causo acontecido. Que segue. Breve. Ave.

Marly Jacobino era a chefe do bando bom perdido no sem se perder da grande Festa Literária de Paraty – que piracicabano que lia ou lê, de se ler mesmo, adora uma FLIP. Marly. Saudosa. Sua força vinha da prosa – sua valentia, da poesia. Enfrentando a doença terrível que a perseguia, Marly caminhava sempre à frente – corajosa, literária e literosa, escrevendo em letras de mão as suas histórias sempre engraçadas que curiosas. Em Paraty, nessa edição do ano que não me lembro (é óbvio!), Marly seguia na dianteira dos piracicabanos, conduzindo sem conduzir, indicando as vontades, as verdades e as atividades do grupo que tropeçava vez em vez nas pedras pés de moleque da cidade. Diga-se de passagem, se via de longe que éramos todos piracicabanos de natureza em excursão – quicando entre risos e vexames entre as pedras de rio da nossa interiorianidade.

Lá pelas tantas, e esse é o causo, saindo de um café, Marly avistou – avistoso – o grande ator Paulo Betti. Não foi de jeito nem deu pra dizer não. Na ocasião, Marly disparou feito bala, topando os pés nas pedras da vida, e chegou feliz que saltitante diante do ator – sempre eterno em gentilezas que o é. A emoção foi tanta, e tanta, que a minha amiga querida – sem memória como eu – se esqueceu do sobrenome dele no de repente. Em choque, disse apenas, carinhosa e carinhante: “Paulo!” Foi o da vez. A minha voz travou de vê-la assim esquecida na hora certa – e não pude completar para ela, ao pé do ouvido, o dito sobrenome esquecido. O “Paulo”, feito assim de tão íntimo pré-nome, respondeu sorrindo em gentilezas e abraços. Mas em socorro a Marly, todavia, o pior se deu. O bando piracicabano acudiu correndo a amiga esquecida e se achegou em desejo de participação naquela intimidade acontecida. “É o Paulo Autran, Marly” – disse uma, numa ajuda gloriosa. E o Paulo, sorrindo. “Nada, é o Paulo Gracindo” – disse outra, sentenciosa da verdade. E o Paulo – agora Paulos – quedando-se em pleno silêncio de estupefação risonha. Em finalmentes, para por fim ao dito não dito dos esquecidos, alguém que até hoje não sei quem foi arrematou: “Gente! Estamos na FLIP! Uma festa literária! Esse é o Paulo Coelho!”

Foi o de ser ouvir e ver – diria o velho Rosa. O Paulo-agora-Paulos continuou em apenas sorrisos – sem correção. E ainda deu alguns autógrafos gentis – que de tão gentis neles só pude de longe ler: “Paulo B.” (Gentil como é, ele deve mesmo ter achado demasiadamente sem elegância qualquer informação sobre sua identidade secreta). Grande Paulo. Querida, saudosa e imensa Marly. Corrigir em público, nunca. Essa eu também aprendi, nesse dia, com o Paulo. O Betti. E tomara que eu nunca me esqueça. Nunca.

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Alexandre Bragion é cronista deste matutino (provavelmente – e se não nos falha a memória) desde 2017.

 

 

 

 

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