Crônica de um urbanicídio premeditado

Luis Tito Kehl

 

O que é preciso discutir, no caso da Boyes, é, fundamentalmente, a quem pertence a cidade, a quem pertence seu patrimônio ambiental, a quem pertence sua história.

Não é possível que um colegiado garantidor de privilégios conceda magnanimamente ao capital o direito a se apropriar de um sítio urbano, de raras topologia e beleza, apenas com a finalidade de conceder ao dinheiro o usufruto da paisagem e da posição única que ocupa, já não dizemos dentro da cidade, mas dentro de uma região inteira.

Não é possível que um acidente natural tão peculiar e pleno, como a envoltória do salto do Rio Piracicaba, seja concedido como prêmio ao duvidoso status do endinheiramento, às custas do direito da população a ter e possuir – no sentido mais legítimo do termo – a beleza, a majestade e a imponência do rio, em seu ponto de máxima opulência.

A autorização para que uns poucos “privilegiados” se beneficiem com a mutilação da paisagem piracicabana, rasgando seus horizontes e destruindo o tecido magnífico que a natureza gestou em milênios, é, sem outras considerações, um crime, uma espoliação, um furto, um roubo do patrimônio, e aqueles responsáveis por essa aberração deverão responder como criminosos que são, e nada menos.

Esperamos que o povo e a sociedade piracicabana despertem para o que está acontecendo e, em boa hora, evitem esse descalabro, cujas proporções transcendem o momento atual, e projetam toda a incultura contida nessa malfadada empresa, pelas gerações futuras de nossa cidade.

UM POUCO DE HISTÓRIA

A palavra grega “polis”, aplicada à cidade, significa pluralidade.

De fato, o que caracteriza uma cidade é ser o lugar do vário, de todos, de toda a variedade de tons, matizes, cores, luzes e sombras que encontramos na sociedade organizada.

A cidade sempre foi isso, espraiando-se em espaços comunitários, sem que grupos privilegiados segregassem partes suas para seu próprio conforto e benefício.

Mesmo nos períodos que sucederam ao modo de urbanização romano, a cidade continuou a abrigar indiferentemente a ricos e pobres, em convivência, jamais em exclusão.

Esse modo de ser se estendeu por séculos, e podemos observar uma primeira mudança quando do grande incêndio de Londres, em 1666, após o qual, sob os escombros da urbe, grupos de empresários obtiveram autorização para erigir e explorar novos bairros, inaugurando, pela primeira vez na história, a valorização do metro quadrado de terreno como medida pecuniária.

A partir daí, o espaço urbano passou a ter um valor meramente econômico, e isso alterou por completo as relações sociais dentro da cidade, com a consequente expulsão das classes menos privilegiadas de seus terrenos e imóveis, em especial dos centros urbanos, em direção a periferias cada vez mais distantes.

Isso fez com que, do ponto de vista dos governantes, a cidade passasse a ser identificada, cada vez mais, com os setores centrais, ricos e diferenciados.

Surge uma nova noção, a de “cidade legal”, “cidade formal”, em contraposição aos núcleos informais das periferias.

Esse vício de visão permanece até hoje, a tal ponto que, dentro do quadro do neoliberalismo, passa-se a considerar “natural” a apropriação de espaços urbanos pelo capital, em detrimento da totalidade da população.

O poder público deixa de investir em equipamentos públicos, e transfere para a iniciativa privada esse encargo, gerando espaços cuja destinação é dar lucro, mais do que atender à população, a qual, grosso modo, não tem poder aquisitivo para pagar pelo uso dos equipamentos.

A entrega da área da Boyes a um empreendimento privado, numa área que atinge inclusive a envoltória de bem tombado, é um flagrante exemplo do desrespeito com que a cidade e sua população são tratados, seja pelo Poder Público, seja pelos empreendedores interessados apenas no retorno financeiro projetado.

A responsabilidade por esse duplo crime – patrimonial e urbano – descaracterizando para as gerações futuras toda uma paisagem, raríssima em cidades brasileiras – pela presença imponente do rio, do engenho, das matas ciliares, do salto – recairá sobre todos aqueles que trabalharam pela destruição de mais esse trecho da cidade, sem pensarem no que isso implicará de perda de qualidade urbana para as próximas gerações.

Ou seja, um crime que, se hoje já é grave, será ainda mais agravado a cada geração que passe, sem o direito à beleza, à paisagem e ao uso comum das áreas afetadas.

“A violência tem relação direta com a divisão do território, concebida pelo capital imobiliário. O verdadeiro combate à violência só se dará quando o direito à cidade for para todos. É urgente que a cidade volte a ser “polis”.”

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Luis Tito Kehl, arquiteto, membro do Coletivo Painguás

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