A cumplicidade norte americana na tragédia humanitária de Gaza

José Machado

 

No último dia 18, os EUA votaram contra proposta de resolução do Conselho de Segurança da ONU aplicada ao conflito em curso na Faixa de Gaza, entre Israel e o grupo extremista palestino Hamas, e que, se aprovada, permitiria a adoção de medidas humanitárias urgentes em proteção à população civil palestina, vítima dos bombardeios, com milhares de mortes, e também facilitaria as negociações para a libertação dos reféns israelenses em mãos do Hamas.

Dentre as medidas humanitárias urgentes estão as relacionadas à suspensão dos bombardeios, pelo menos intermitentemente, a fim de permitir a disponibilidade de medicamentos, alimentos, energia elétrica e água potável para suprir diretamente a população civil e também os hospitais, repletos de feridos em estado grave. Acrescente-se a constituição de corredor humanitário para proteger a entrada e atuação dos profissionais das entidades humanitárias e também permitir a evacuação de civis estrangeiros. As medidas humanitárias são exigências de tratados internacionais e não podem ser negadas e, caso o sejam, os responsáveis estão sujeitos ao enquadramento como criminosos de guerra.

O intento aqui não é o de avaliar quem tem razão nessa guerra insana, embora essa não seja uma questão menor, pelo contrário. O ponto focalizado é o de apreciar o gesto dos EUA na votação da referida resolução no Conselho de Segurança da ONU.

É inacreditável e estarrecedor que uma nação do porte e da relevância mundial como os EUA se recusem a aprovar uma resolução óbvia do ponto de vista civilizatório, sob o cínico pretexto de que ela não contemplou explicitamente o direito à autodefesa de Israel diante do ataque sofrido. Ora, a minuta da resolução, sob a orientação do governo brasileiro, que neste mês de outubro tem a prerrogativa de presidir referido Conselho, foi pacienciosamente negociada e construída pela diplomacia brasileira e seu inteiro teor era de sobejo conhecimento prévio da representação norte americana. Lembremo-nos que cinco países – EUA, China, Reino Unido, França e Rússia – têm direito a veto no Conselho. Basta um voto contra para qualquer resolução ser rejeitada. E registremos que a resolução costurada e defendida pelo Brasil contabilizou doze votos a favor e duas abstenções, tendo apenas os EUA votado contra.

Por que a representação norte americana não pelejou nos bastidores para garantir o atendimento às suas exigências ao texto? Por que preferiu o silêncio e aguardou a instalação da plenária do Conselho para então proferir o seu voto contrário?

É de se duvidar que a explicitada exigência norte americana no seu voto, relativa ao direito à autodefesa de Israel diante do ataque do Hamas, não fosse acolhida por unanimidade pelos integrantes do Conselho, caso fosse apresentada tempestivamente durante a construção da resolução, pois esse direito reclamado está consagrado no Direito Internacional. Ao não se mexer para negociar esse ponto, os EUA evidenciaram que, na verdade, estavam cinicamente predispostos a impedir a aprovação de qualquer resolução, por mais adequada que fosse, pois seu propósito é o de avalizar incondicionalmente Israel, como de fato avalizou pela presença ostensiva do presidente Joe Biden em Tel Aviv na visita fulminante de sete horas que fez ao país.

Na atualidade, os EUA se arvoram no direito hegemônico de ditar arrogantemente as regras da convivência internacional e se recusam a aceitar a preeminência da ONU. Isso indica, por outro lado, que a guerra, pouco importa o seu saldo trágico, compõe o plano estratégico norte americano para impor o seu modelo hegemônico sobre as nações. A ONU, se um dia significou, hoje parece não significar mais nada aos EUA. Essa é uma constatação aterradora, pois, sem uma governança global legítima e confiável, capaz de mediar e solucionar os conflitos, num mundo cada vez mergulhado no fundamentalismo e confrontado pelas mudanças climáticas, que futuro promissor se vislumbra para a Humanidade?

Manifestações se avolumam no mundo todo contra o atual conflito, enfatizando a questão humanitária. E não é diferente nos EUA, onde vozes do povo e da mídia, nas quais se incluem amplamente membros da comunidade judaica, se levantam contra o genocídio que ora se pratica em Gaza. Por outro lado, outros atores se envolvem no conflito, trazendo a ameaça de uma conflagração mais ampla.

Valentemente e cioso de sua responsabilidade, o Brasil já se articula para negociar e construir outro texto de resolução a ser apresentado ao Conselho de Segurança da ONU. Essa persistência é fundamental, pois vidas humanas estão em jogo e são preciosas. Quem sabe os EUA, pressionados mundialmente, em razão da sua performance digna de uma república de bananas, se sensibilizem e contribuam para aprovar a resolução e construir a paz.

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José Machado, ex-prefeito de Piracicaba em dois mandatos; deputado federal pelo PT

 

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