No tempo em que Berta fiava

Armando Alexandre dos Santos

 

“No tempo em que Berta fiava” é uma antiga expressão usada para significar um passado remoto, perdido na noite da memória. Suponho que a expressão tenha alguma relação com Carlos Magno, cuja mãe entrou para a História com a designação nada romântica de “Berta do Pé Grande”.

Essa expressão, que é usada como título deste artigo, me voltou à lembrança quando me pus a pensar no tema do presente artigo. A memória humana nos prega surpresas. Continuamente temos mostras disso. É frequente nos recordarmos de repente de algo que nos impressionou profundamente na infância ou na adolescência e, depois de décadas de absoluto esquecimento, volta com força total. Isso se dá, no meu caso, quando releio algum livro lido há mais de 50 anos, ou quando assisto a algum filme já visto “no tempo em que Berta fiava”.

Pois foi de uma leitura que marcou profundamente minha adolescência que recordei de repente. Era uma coleção de cinco volumes, chamada “Grandes Vocações”, lançada nos primeiros anos da década de 1960 e coordenada pelo jornalista campineiro Mário Donato, que reuniu colaborações de numerosos autores. Cada um dos volumes era dedicado a um tipo de vocação. Havia um sobre inventores, outro sobre cientistas, outro sobre empreendedores, outro sobre libertadores e outro sobre apóstolos modernos. Cada volume continha 5 ou 6 biografias, cada uma delas com 50 ou 60 páginas de texto. O estilo adotado pelos redatores era agradável e fluente, perfeitamente inteligível pelos meninos do meu tempo. Hoje, infelizmente, já seria considerado rebuscado e erudito em demasia até mesmo para muitos graduados em cursos superiores. Tempora mutantur!…

Li e reli diversas vezes aqueles textos que, para um menino da minha idade, pareciam fascinantes. Um dos biografados me impressionou de modo especial: Heinrich Schliemann (1822-1890), o arqueólogo alemão que descobriu as ruínas de Troia e ficou famosíssimo por isso. Em 1966, na segunda série do curso ginasial, cheguei a fazer em classe uma exposição (um “seminário”, como se dizia) sobre Schliemann.

Por que me retornaram de repente essas recordações tão antigas? Por que encontrei entre meus papéis e aqui reproduzo, alguns apontamentos feitos durante os anos de faculdade, sobre a arte minoica, da ilha de Creta. Trata-se de uma arte refinada, requintada, de muito bom gosto até mesmo para padrões atuais. Em outros termos, é uma arte que o homem moderno, sem grande dificuldade de adaptação psicológica, é capaz de compreender e admirar.

As cerâmicas são de uma riqueza maravilhosa, carregadas de elementos simbólicos e figurativos. Nelas, por exemplo, linhas onduladas podem significar as ondas encapeladas do mar, espirais podem significar os galhos ascendentes de uma trepadeira. Parece haver, em alguns motivos explorados pelos artistas cretenses, algo de impressionismo, de subjetivismo facilmente captável pelo observador (pelo menos essa foi a minha impressão pessoal). Plantas, flores, animais terrestres e marítimos, paisagens, cenas da vida quotidiana, tudo isso tem expressão própria nas cerâmicas cretenses. As mais antigas eram quase exclusivamente bicolores, ou, mais precisamente, tinham traços brancos sobre fundo preto. Eram algo que fazem lembrar um desenho feito a giz branco, sobre lousa escura. Mais tarde, foram aparecendo as cores e as cerâmicas foram se tornando esplendorosas, sinalizando uma notável evolução cultural.

Já nas pinturas, de que as ruínas do palácio real de Cnossos nos dão amostras impressionantes, a riqueza é estonteante. Há cenas que impressionam pelo realismo, e certas imagens parecem vivas. A natureza toda parece animada. As cores são vivas, os traços vigorosos. Há, por exemplo, figuras de jovens que conduzem vasos de ouro, dançarinas que bailam, crianças que colhem flores. Há, até, uma figura muito engraçada de um gato que se prepara para saltar sobre uma ave.

O combate aos touros, que na Península Ibérica até hoje se pratica, era primordial em Creta. Era, ao que parece, o esporte preferido da juventude cretense, como atestam numerosas imagens conservadas da época. As várias fases e modalidades da luta são estampadas. O touro, aliás, é animal sempre presente na simbologia cretense, haja vista a lenda do Minotauro.

A naturalidade é algo que chama logo a atenção. Os artistas cretenses pareciam ter gosto especial em retratar a natureza, nas suas mais variadas formas. Parecia que a natureza continha, para eles, todas as formas desejáveis e alcançáveis de beleza e esplendor, muito mais do que as formas geométricas ou os arabescos característicos de outras culturas.

Um aspecto que realça é o da frontalidade das figuras representadas. As mulheres aparecem com um aspecto quase moderno, com saias pregueadas e corpetes ajustados. Os homens também, sempre vistos de frente com as duas pernas e os dois ombros aparecendo, ainda quando retratados em posição lateral e com o rosto inteiramente de lado.

Há uma cena frequentemente reproduzida, de um grupo de homens e mulheres que parecem estar assistindo a algum espetáculo. São tão vivos que o observador tem a impressão de que estão a ponto de se porem a andar e saltar. Nesse sentido, a arte cretense é bem diversa da egípcia, da qual recebeu a frontalidade, mas à qual acrescentou a vida. O hierático, o fixo, o plácido (e, de certa forma, o mórbido) das figuras egípcias desaparece totalmente nas cretenses.

A escultura parece ter sido influenciada pela egípcia e, em menor medida, pela assíria. Mas nota-se nela uma liberdade de expressão maior, sem a rigidez, a fixidez e a angularidade dos modelos primitivos. É de se notar, entretanto, que a escultura cretense parece ter sido quase exclusivamente de escala reduzida, reproduzindo imagens pequenas, não de tamanho natural. O rigor na reprodução dos detalhes é também nota característica da estatuária cretense.

Infelizmente, uma civilização tão culta e refinada parece ter soçobrado violentamente diante da invasão dos dórios. Há indícios de que o palácio de Cnossos tenha sido devorado por um incêndio.

 

 

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

Frase a destacar: É frequente nos recordarmos de repente de algo que nos impressionou profundamente na infância ou na adolescência e, depois de décadas de absoluto esquecimento, volta com força total.

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