Coisa e objeto: são ou não são a mesma coisa?

 

Museologia, como o próprio nome indica, é o estudo dos museus. Discute-se muito, no plano teórico e metodológico, se ela constitui uma ciência autônoma, ou se mais bem deve ser considerada uma simples área do conhecimento humano. Mas todos estão de acordo em reconhecer a museologia como auxiliar poderosíssima da História, porque dá acesso a uma ordem de realidades profundas que permitem uma compreensão muito mais ampla e abrangente da própria História.

Em teoria museológica, têm grande importância dois conceitos bem distintos, se bem que na linguagem corrente de todos os dias nós os utilizemos como sinônimos perfeitos. Refiro-me aos conceitos de coisa e objeto. De um modo bem simplificado e direto, pode-se dizer que nem toda “coisa” que chega a um museu tem condições de ser selecionada e incorporada ao acervo museal, de modo a se tornar um objeto de museu, no sentido próprio do termo.

Em outras palavras, todos os objetos são coisas, mas nem todas as coisas podem ser consideradas objetos. Tudo depende do significado que se lhe atribui, como explica muito bem o verbete “Objeto [de museu] ou Musealia”, do livro Conceitos-chave de Museologia, de André Desvalles e François Mairesse (edição da Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2013).

Muitas coisas antigas eram feitas com funções memorialísticas e com a intenção de deixar testemunhos para o futuro (lápides, inscrições tumulares, pinturas ou marcas de mãos rupestres etc.) mas muita coisa era apenas usada funcionalmente sem qualquer intenção de dar testemunho do seu tempo. Ou até era descartada como lixo e hoje podemos analisar cientificamente do ponto de vista arqueológico e muitas vezes guardamos em museus.

Um caco de vaso partido, de si, é uma “coisa”. Não passa disso. Mas se foi encontrado numa escavação arqueológica, pode se tornar um objeto digno de figurar num grande museu. Por quê? Porque a esse simples caco se atribui um significado…

Recordo de ter visto, no Museu da Cidade de Canudos, na Bahia, fragmentos de louça fina inglesa, desenterrados das ruínas do arraial de Canudos, destruído impiedosamente em 1897. O fato de aqueles sertanejos rudes, seguidores de Antonio Conselheiro, terem usado louças finas permite uma série de indagações históricas e sociológicas curiosíssimas. Hoje, depois de divulgadas as pesquisas de campo feitas pelo Prof. José Calasans, da Universidade Federal da Bahia, sabe-se que nem todos os moradores do arraial de Canudos eram sertanejos rudes e incultos, mas entre eles havia gente de nível social, econômico e cultural mais elevado. Em Canudos havia muitos pobres, mas havia também uma espécie de “classe média” e alguns muito ricos. Essa visão, que choca frontalmente com a “construção” de Canudos feita por Euclides da Cunha e mais ou menos reproduzida por quase todos os autores que trataram do assunto, começou por ser desmentida por uns cacos de louça inglesa… Não eram “coisas”, apenas funcionalmente usadas, mas, uma vez “desfuncionalizadas” e contextualizadas, adquiriram aos olhos dos estudiosos um sentido novo, extremamente importante para corrigir interpretações históricas e sociológicas equivocadas. Passaram a ser objetos, no sentido próprio do termo.

Recordo que visitei, há mais de 40 anos, o museu municipal da cidade de Amparo-SP. Ali estava exposta uma curiosidade: uma pedra extraída do fígado de uma paciente por volta de 1910, por um médico local. Pedras de fígado, ou melhor, de vesícula, são tiradas hoje com a maior facilidade, mediante laparoscopia. Eu mesmo tirei várias… Fica-se apenas um dia no hospital, são feitos uns minúsculos furinhos no corpo do paciente anestesiado, são introduzidos uns tubos que fazem toda a operação. Tudo é muito simples. No dia seguinte o paciente já é dispensado e pode retornar a sua casa, retomando a rotina normal de vida.

Na época em que um médico amparense fez essa operação, entretanto, ela era ousadíssima. Só tinha sido realizada 3 ou 4 vezes na Alemanha, por um médico que ficou famoso no mundo inteiro, e somente um outro médico, se não me engano um inglês, havia conseguido imitá-lo. Ambos ficaram famosos, celebradíssimos em congressos médicos de todo o planeta.

Que um médico brasileiro tenha sido o terceiro, já é de si notável. E que não tenha atuado num grande hospital do Rio de Janeiro, então capital nacional, ou de São Paulo, mas numa sala de operações improvisada numa humilde clínica interiorana, isso foi algo que marcou época. Tornou-se motivo de orgulho para a cidade que, cem anos depois, ainda conservava, como recordação do grande feito, a pedra. Não era uma coisa, era um objeto de altíssimo valor, digno de ser conservado com honras num museu. Por quê? Porque tinha um alto significado.

Acresce que esse médico brasileiro, que havia nascido na Bahia (seu nome era Dr. Coriolano Burgos), se instalou em Amparo e ali fundou uma família de médicos. Seus dois filhos, seus netos e bisnetos, se tornaram médicos excelentes. Ele era o patriarca de uma verdadeira dinastia de médicos da qual Amparo a justo título se orgulhava. Tudo isso ajudava a conferir, à pedra extraída 100 anos antes do fígado de uma pobre mulher, um significado elevadíssimo.

Creio que a recordação desse caso, mais do que qualquer consideração teórica, basta para que se entenda bem a diferença, no âmbito museológico, entre os conceitos de coisa e de objeto.

 

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

Frase a destacar: Visitei o museu da cidade de Amparo-SP. Ali estava exposta uma curiosidade: uma pedra extraída do fígado de uma paciente por volta de 1910.

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