A jardineira mal dobrou a esquina e o motorista despencou em berreiro:
– Caixão de defunto aqui num entra!
No entre o berro e o pulo, contrariando a ordem do piloto-capitão, caixão e carpinteiro se instalaram no carro. Surdos por conveniência, criador e criatura davam da vida como se o berro não fosse com eles. Em fuga de má-sorte, o povo na jardineira – sentadinho que estava – tirava no de propósito os olhos da urna e se esgueirava em plena curiosidade, vendo sem querer ver a caixa preta reluzida. O motorista entornou o freio: péeeee! A jardineira sacolejou para adiante até parar de bico: piiiiiischh! Três passageiros meteram os chifres no tampo em pancada seca – tou!
– Coisa de morto aqui não pode, moço! A freguesia tem medo. Pode descer, no faz-favor.
– Mas, Seu Oscar! – pelejou o tipo. Não foi que a carroça emborcou de roda quebrada justo hoje. Fiquei no sem nenhum. Compreenda. A família do que se foi é que está na espera. Tenha compaixão, homem. O caso nem é coisa de se ganhar dinheiro: é caridade. No mais, o cidadão já apitou mesmo – qual problema? Que no agora é com Deus, que a nós só resta mesmo vestir no pobre o paletó de madeira. Não é para causo nem custo.
– A freguesia tem medo, moço. Pode descer.
– Mas e o que se finou, Seu Oscar? Deus o tenha. Sem vida e sem campa? Dai descanso a quem precisa, homem. Colabore. E digo mais: olhe que bulir com essas coisas no prejudicado da hora pode trazer coisa ruim. Se eu fosse o Senhor…
Baita trucada. Seu Oscar ferveu a máquina e coçou a calva. Agora, se estava na pauta da superstição – e ele se borrava todo quando suspeitava que lhe lançavam o que ele chamava de catiça. Sete paus na minha testa – pensou.
– Moço… – disse num quase ódio. Que seja só dessa vez – compreende? E que seja para que o que se foi se possa ir de fato, e por aqui me deixe no ato, também (e se benzeu três vezes). Então, se ponha a me ouvir: isso aí, aqui, só viaja se for em cima, de telhado, escondido da freguesia. Que se o povo bate o olho no azar deitado nos bancos, não sobe que é nenhum e eu perco o dia.
– Mas, Seu Oscar…
– É pegar ou largar – que de outro feito num dou arranco.
Tomando a fresca da tarde, lá se foram caixão e carpinteiro por cima da jardineira – batendo de ponto em ponto pela cidade. No miolo do carro, o povaréu despercebido foi se perdendo e se partindo pelo caminho, nas esquinas do estou em casa.
No quase último ponto, porém, no quase derradeiro da entrega, o que era vento virou água: tempão de Deus me leve – que quem morre em dia de chuva vai direto para o céu. No teto da jardineira, fugindo da noite tenebrosa que caía, meteu-se o carpinteiro no caixão, fechado e seguro do rio a rodo que precipitava. E lá ficou o homem, seco e deitado, descansando no descansado do turno e returno da viagem – esquentando a caixa para quem viria.
De poça em poça, chegou a jardineira à parada final. Com ela se foi indo também a chuva, num finda não finda meio sem fim. Na esquina do derradeiro, a lua e a fila – comprida que magra – no ponto de embarque à espera do carro que, dessa vez, trazia no teto, para espanto das gentes, um caixão de defunto brilhante.
No baque do freio, a parada. Diante dos que esperavam em fila de dia de semana, o homem-carpinteiro despertou das profundas do impossível. Num muque demais de repente, abriu por dentro o caixão diante dos olhos do povo.
– Cabô a chuva? – perguntou de cima, por fim, como quem abre uma janela que dá para um jardim.
Pausa. Que de terror também se faz a história. Pausa. Entre gritos e ex-conjuros, não sobrou senão nenhum para subir na condução – que agora trafegava para a história eterna das conversas ribeiras, das cachaças em beira-rio, caso-causo, no tempo. Foi.
Seu Oscar? Esse perdeu o ponto e aposentou a jardineira de uma vez, que ninguém mais queria andar nela de novo (seja dito em defesa dele, os anos também eram chegados, outros mundos, outros carros).
Quem nunca mais deu as caras foi o carpinteiro – que nunca mais se soube dele. Evaporou-se na hora do espetáculo. Ao que parece, cabe registro, alguns que estavam na fila ainda tentaram alcançá-lo ladeira abaixo, quando ele corria sumido, talvez com medo de algum revide – que o povo, esse sim, é por demais supersticioso.
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Alê Bragion é cronista deste matutino desde 2017.