Almir Pazzianotto Pinto
O inútil pedido de socorro ao porteiro do prédio em que vivia, feito pelo vigilante João da Silva de Sousa, de 54 anos, após ser esfaqueado pelo “nóia”, morador de rua drogado, não bastou para lhe salvar a vida.
A vítima havia deixado o modesto apartamento no Largo General Osório no início da noite de terça-feira, dia 15/8, quando se viu atacado pelo criminoso que pretendia lhe roubar a mochila. Ao se defender, o agressor lhe desferiu facada “na lateral do tórax”, conforme relata o Estadão (18/8, A15).
A morte do trabalhador suscita várias questões. Comecemos pela faca. A intensa campanha pelo desarmamento, do presidente Lula, não alcança, e jamais alcançará as camadas marginais da sociedade. Arma, segundo os dicionários, é todo e qualquer instrumento, ferramenta, aparelho, substância, preparada ou utilizada para ataque ou defesa. Os poderosos canhões do Forte Copacabana, no passado aptos a disparar projeteis de artilharia contra invasores do Rio de Janeiro, já deixaram de ser armas. Há décadas estão adormecidos, como capítulos da história da Marinha de Guerra.
Na mesma situação se encontram fuzis Manlichers e Comblains, usados pelo Exército na carnificina de Canudos (7/11/1896-8/10/1897). São peças decorativas, que lembram tragédia quase esquecida. São encontrados em boas hoplotecas. A faca, a navalha, a peixeira, o punhal, a januária, nas mãos de pessoa adestrada, podem ser tão perigosos quanto a carabina e o revólver modernos.
Em 5/11/1897, o então presidente da República, Prudente de Moraes, ao recepcionar no antigo Arsenal de Guerra tropas que retornavam de Canudos, foi alvo do ataque cometido pelo anspeçada Marcelino Bispo. Armado de garrucha e punhal, tentou matá-lo. A garrucha falhou, mas o marechal Carlos Machado Bittencourt, Ministro da Guerra, foi apunhalado e morreu no local. O senador Pinheiro Machado, um dos principais nomes da política nacional no início do século passado, foi esfaqueado e morto por Manso de Paiva, no saguão do Hotel dos Estrangeiros, Rio de Janeiro, em 8/9/1915. O pintor José Ferraz de Almeida Júnior, autor de quadros célebres como “Caboclo picando fumo”, “Leitura”, “Descanso do Modelo”, foi assassinado pelo primo José de Almeida Sampaio, o Juquinha, que lhe cravou o punhal na jugular. Ocorreu no Hotel Central, em Piracicaba, em 13/11/1899. O crime foi passional.
Demagógicas campanhas contra armas de fogo jamais conseguirão retirar de circulação milhares de armas brancas adquiridos em bodegas, armazéns ou supermercados. Habilidosos artesãos conseguem produzi-las a partir de simples retalho de aço. Facas são úteis no açougue e na cozinha, mas se transformam em armas letais, quando empunhadas por delinquentes.
A segunda questão é a persistência da cracolândia, onde se reúnem consumidores de entorpecentes, sobretudo do crack (palavra já dicionarizada). São aglomerados localizados na região da Luz, que resistem às investidas da polícia e da guarda municipal. Avenidas, ruas e praças estão dominadas. Prédios residenciais, comerciais e casas se encontram ilhados, com moradores reclusos. Lojas, bares e restaurantes foram abandonados, pela impossibilidade de receberem clientes. Motoristas que transitam pela cracolândia são vítimas constantes de assaltos. O caos tomou conta de ruas tradicionais, como acontece com a Santa Ifigênia.
Fracassaram as tentativas de erradicação da cracolândia. Qualquer medida coercitiva, porém, deve levar em conta que a gravidade do problema reside no fato de os viciados serem humanos. Degradados física e moralmente, mas seres humanos e, como tal, protegidos pela Constituição e demais leis do País. O Supremo Tribunal Federal (STF) aparenta entender que mero consumo da maconha não é ato delituoso. Por analogia deve-se aceitar que o vício em crack, cocaína, heroína, anfetaminas, não constitui crime.
Não há consumidor sem traficante. Este o nó cego da questão. O lucro proporcionado pela comercialização gerou bilionários cartéis mexicanos e colombianos. Veja-se o caso do Equador, cujo porto de Guayaquil foi transformado em entreposto por onde saem toneladas de drogas para a África e Europa (O Estado, 19/8, pág. A16).
O combate à cracolândia deve ser conduzido pela inteligência. As policiais militares estaduais não dispõem de meios materiais e humanos para ocupar os amplos espaços da Região Amazônica. A tarefa pertence ao Exército, à Marinha e à Aeronáutica. É necessário impedir a entrada de drogas contrabandeadas do Peru, da Colômbia, da Bolívia, para evitar que cheguem à rodovia Castelo Branco.
Na guerra contra o tráfico, o Brasil não pode ser derrotado.
_____
Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST); autor de várias obras