Os bestializados

Adelino Francisco de Oliveira

 

Quais os passos para se liquidar com todo um arcabouço civilizacional? Como se destrói toda uma perspectiva cultural, edificada ao longo de milênios de trajetória humana? Qual o nível necessário de desconstrução e alienação para se desfigurar toda uma sociedade até que se alcance o ponto dos indivíduos não mais se reconhecerem como humanizados? Talvez não haja uma resposta clara e direta, mas a impressão que se tem é que estamos a caminho do caos, da barbárie.

É notório a compreensão do humano como um ser que se define a partir das múltiplas interações culturais. As experiências na cultura revelam-se fundamentais para a elaboração das percepções e representações de mundo. Ultrapassando muitas vezes a força comunitária do núcleo familiar, da pedagogia escolar e da designação religiosa, o contemporâneo passa a ser marcado por novos e inusitados ambientes de formação sócio moral. O tipo e qualidade de arte que se tem acesso; os grupos sociais de pertencimento e interação; a fragilidade teológica da religiosidade cultuada; os ambientes – virtuais ou reais – onde se estabelece o compartilhamento; as influências digitais e os canais de youtubers acessados talvez constituam um outro locus de formação ética e cultural.

Nesta dinâmica, alcança extrema relevância identificar o que tem alimentado a sociedade e definido as consciências. Há um crescente fascínio pela violência, acompanhado de um profundo desprezo pela vida. É sempre perigoso cultivar o ódio, a intolerância, a indiferença, o ressentimento, a insensibilidade. Esse culto macabro, sedimentado na banalidade do mal, pode produzir perversas sequelas para o conjunto da sociedade. O resultado pode ser uma cultura que fomente e produza existências desfiguradas, brutalizadas, bestializadas, refratárias às dimensões mais belas, delicadas e profundas do humano.

Por mais abstratos e idealizados que sejam, princípios como amor ao próximo, ética, dignidade humana, alteridade, justiça, igualdade, liberdade, direitos fundamentais se compõem como balizas para se projetar as relações humanas. Tais princípios, vislumbrados como referenciais perenes e absolutos, a serem cultivados, destacam-se como critérios críticos de análise e julgamento. A partir deles se perspectiva o futuro acalentado, sonhado, almejado.

Ensinar a viver, tecendo uma sociabilidade atenta à complexidade, que suplanta reducionismos e enclausuramentos, ao mesmo tempo em que permite afirmar a vida, em toda sua singularidade. É preciso aguçar e desenvolver o senso crítico e problematizador por meio da escolha da leitura mais interessante; da contemplação de imagens e roteiros da cinematografia; da cadência e sonoridade de letras e arranjos musicais; dos instigantes encontros e conversas inteligentes com os amigos mais queridos. Sugere-se propor a composição de uma transparência de ideias e percepções que fluem de maneira a alargar os sentidos existenciais, compreendendo que o processo de humanização é sempre contínuo e dinâmico.

O compartilhamento de tudo que a humanidade produziu de mais elevado torna-se uma necessidade urgente, um direito inalienável. A busca por um conhecimento sempre mais denso, aberto e profundo ilumina a vida, lançando o humano para um devir criativo e cheio de possibilidades. Toda riqueza humana, que soma contribuições de tantas culturas, deve ser democratizada. É evidente que se existe uma cultura capaz de elevar, enaltecer e ampliar as potencialidades do humano, há, por outro lado, um conhecimento que rebaixa, limita, estreita e aniquila as perspectivas da vida. Resistir a toda essa onda de boçalidade talvez seja a grande tarefa do contemporâneo.

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Adelino Francisco de Oliveira, professor no Instituto Federal, campus Piracicaba.

Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências da Religião; e-mail: [email protected]

 

 

 

 

 

 

 

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