Lembranças de um velho aldeão (10) – “Meninos, eu vi!”

Cecílio Elias Netto

 

Se nunca escrevi poesias? Sim, escrevi. Ou melhor: tentei fazê-lo. Jamais, porém, tive coragem de publicá-las, com uma ou outra exceção. Pois – entre as indagações sobre o que seria a poesia – uma há que sempre me anulou qualquer pretensão. Diz apenas isso: “poesia é um modo privilegiado de expressão linguística”. E, desde muito cedo, reconheci existir esse privilégio que, ao longo da história, tem sido, apenas e realmente, de alguns poucos. Nunca o tive.

À minha geração, a escola antiga revelou um relicário de preciosidades que, ao mesmo tempo, nos deslumbrava e inibia pretensões poéticas. Olavo Bilac, Machado de Assis, Alberto de Oliveira, Gonçalves Dias, Castro Alves e outros luminares brasileiros. E Pablo Neruda? Depois dele, quem há de?

Faziam-se desafios em declamações de poesias. Entre professores de escolas diferentes, entre alunos. Ficaram-nos lembranças da competição literária entre dois luminares daquela época, professores Benedito de Andrade e Eduardo Affonso. O primeiro declamou “Vozes d´África” e o outro, “Navio Negreiro”, alentadas obras-primas de Castro Alves. O júri – formado por outros professores – declarou-se incapaz de proclamar um vencedor, tal o brilho de ambas as interpretações.

Como esquecermos do “I-Juca-Pirama”, de Gonçalves Dias, em que o poeta canta o “Meninos, eu vi”? Pois é dele que empresto as palavras para, aos meninos de agora, dizer que também vi. E vi uma Piracicaba realmente “cheia de flores, cheia de encanto”, como a cantou Newton de Mello. Igualmente à escola do poema de Acácio Antunes, Piracicaba era, também, “risonha e franca”. Posso jurar assim tenha sido. Pois, meninos, eu vi.

Vi Nhô Lica garimpando pedras preciosas à beira do rio. Cada pedregulho colhido ele o examinava como um possível diamante. Acreditando encontrá-lo, escondia-o no bolso do paletó. Tínhamos, pois, um rio com tesouros ocultos. E entendíamos, então, o porquê de o Salto bufar com a presença de estranhos. O rio, então, era só nosso. Apenas nosso. Mergulhar nele, saltando do trampolim, era, pois, aventura propícia apenas aos nativos, nascidos ou adotados.

Vi o bonde, meninos. Os bondes! Que eram, também, fontes terapêuticas. Não havia problema, dificuldade ou aborrecimento que sobrevivessem a um simples “passeio de bonde”. Brigou com a namorada? Vá passear de bonde. Perdeu o emprego? Passeie de bonde. Ir até à Estação da Paulista, à Vila Rezende ou à Escola Agrícola a bordo do bonde, o vento entrando pelas laterais, o delém-delém em cada esquina, como risos de alegria… Ficar no estribo para não pagar e enganar o cobrador… As saudações dos transeuntes… Espiar a casa da bela Anunciata, que se exibia em camisola rendada… Ver a Maria Fumaça apitando à sua chegada, os viajantes vestidos de terno e gravata…

E – ah! meninos – também vi tragédias, horrores, ignorâncias culpáveis e culposas. Vi a queda do Edifício Luiz de Queiroz (COMURBA), causando 41 mortes e fechando a página de uma história. Vi, num exíguo espaço de tempo, Piracicaba perder as suas principais lideranças: Luciano Guidotti, Salgot Castillon, Cássio Padovani, Guerino Trevisan. E, com a perda, o aparecimento prematuro de jovens bem intencionados, mas ainda não preparados para o comando do município: Adilson Maluf, Joao Herrmann Neto, José Machado.

A história, repetindo-se, vive a tragédia ou a comédia shakespearianas. Entre nós, está, por enquanto, a repetir-se como comédia. Pois, risível é a ridicularia que acontece. No entanto, tornar-se-á trágica se continuar por muito tempo. Piracicaba está a perigo.

 

 

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