O filme de Laurent Cantet

 

Armando Alexandre dos Santos

Tratemos, afinal, do filme “Entre os muros da escola”, dirigido por Laurent Cantet e premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, de 2008. Vejo nele, acima de tudo, uma confrontação não bem resolvida entre as duas esferas educativas, a formal e escolar, conduzida na República francesa por um rígido sistema pré-estabelecido, e a não-formal, que na realidade constitui um universo muito amplo, dentro do qual se insere, como parte bem menor, a vivência “intra muros” da escola.

Em outras palavras, os indivíduos passam muito mais tempo recebendo influências culturais da educação não formal do que recebendo educação formal na escola. Daí a necessidade de se articularem bem ambas, a educação formal e a não-formal. Como fazê-lo?

Obviamente, não é possível que a vida social toda se adapte aos currículos e objetivos pedagógicos das escolas. A vida real da sociedade é autônoma, tem dinâmica própria, não pode ser artificialmente mudada de cima para baixo nem de fora para dentro. O contrário é que deve acontecer. Cabe à escola repensar-se a si mesma para se adequar às necessidades específicas da comunidade em que está e na qual exerce seu papel.

No filme de Laurent Cantet fica claríssimo o entrechoque entre a escola organizada formalmente, tentando ministrar seu ensino e cumprir sua função social junto a alunos cuja realidade cultural e social estava completamente distante. Na perspectiva dos professores, eram alunos mal-educados (e alguns deles eram mesmo!). Mas, numa outra perspectiva, talvez mais realista, eram apenas alunos cuja educação não formal conduzia em outra direção.

O fato é que o professor vinha longamente dando o melhor de si, para se adequar aos alunos; a maioria da sala estava, ao que parece, disposta a estudar, mas 4 ou 5 alunos problemáticos cristalizavam a atenção de todos e, literalmente, infernizavam a sala. O que fazer num caso desses?

O professor de Língua Francesa – personagem central muito bem interpretado por François Bégaudeau – fez tudo o que estava ao seu alcance, inclusive com relação a um aluno problemático que acabou sendo expulso da escola. Procurou de todas as formas soluções pacíficas e consensuais, abrandando os conflitos e evitando os entrechoques. Mas a situação chegou a um ponto em que o professor, num momento infeliz, referiu-se a uma aluna usando uma expressão que no idioma francês tem sentido muito amplo, mas que ela – que era realmente malcriada e, no contexto, se via que estava realmente querendo perturbar a exposição da matéria – logo interpretou da pior forma possível e, assim, declarou-se gravemente ofendida.

A partir daí, a dinâmica do conflito seguiu o seu curso. Um aluno malinês, que desde o início havia se mostrado especialmente rebarbativo, transformou-se no pivô do caso, no seu eixo mais ativo. A aluna malcriada, continuou sempre envenenando tudo. O professor ainda tentou, a meu ver heroicamente, colocar atenuantes no procedimento do malinês, mas chegou um momento em que o processo de expulsão dele se consumou. Foi algo doloroso, sem dúvida, mas que, àquela altura dos acontecimentos, se tornara indispensável.

Depois desse episódio doloroso, o filme salta para o final do ano letivo. Percebe-se, pelas cenas finais, que após a expulsão a sala conseguira alcançar relativa tranquilidade e o curso correra normalmente. Até a aluna malcriada parece ter tomado mais interesse pela aprendizagem e conta, na cena final, que estava lendo Platão, o que lhe mereceu o elogio do professor.

A pergunta que fica é se não poderia ter sido evitado o episódio da expulsão. Teria sido por culpa do professor? Penso que, mesmo que o professor não tivesse dito a frase infeliz de duplo sentido que disse, mais cedo ou mais tarde o conflito explodiria e, pela dinâmica própria das relações sociais, se chegaria ao rompimento. O professor continuaria sendo provocado pelo malinês contestatário, a aluna malcriada continuaria envenenando as relações dos alunos com o professor, e afinal o rompimento viria de uma forma ou de outra.

O errado, no caso, é interpretar o filme de modo maniqueísta, vendo de um lado mocinho, de outro bandidos. Que o professor foi heroico, a meu ver é inegável, mas isso não significa que ele tenha agido sempre de modo perfeito. Que os alunos – ou melhor, 4 ou 5 dentre os alunos – tenham passado de todos os limites do razoável também é inegável, mas isso não significa que fossem bandidos. Na verdade, todos, docente e discentes, estavam inseridos num contexto problemático, sem muitas possibilidades de fazerem a não ser o que cada qual fez. Não havia, de ambos os lados, um leque de opções muito amplo.

Como conclusão do filme, penso que seria preciso repensar os currículos escolares em função da realidade cultural dos alunos, em cada ambiente específico. O desafio é fazê-lo de modo orgânico, natural, sem dirigismos, sem imposição de ideologias e modismos pedagógicos etc., e mantendo um mínimo de unidade nos parâmetros escolares do país inteiro.

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

Frase a destacar: O errado é interpretar o filme de modo maniqueísta, vendo de um lado mocinho, de outro bandidos.

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima