Cabelo no sovaco

Sergio Oliveira Moraes

 

Uma das maneiras de empobrecer o debate político, que ocorreu de forma generalizada nos anos 2019-2022, foi o apelo estético para atacar, desacreditar o outro. O “cabelo no sovaco” no título é só um exemplo, há muitos: (https://diplomatique.org.br/as-mulheres-de-direita-sao-muito-mais-bonitas-que-as-de-esquerda/). O empobrecimento é tão grande que, em última análise, ser de “esquerda” ou “direita” poderia reduzir-se a um concurso de beleza sujeito a padrões estéticos impostos, digo, vigentes no momento. Sabemos no que deu. Afrodite ofereceu um suborno maior que Hera e Atena, comprou o voto de Páris (que escolheu Afrodite a mais bela das três) e deu na Guerra de Tróia. Pela lógica da estética, Afrodite seria de direita, Hera e Atena, de esquerda. Não é ironia, o absurdo está no pretenso argumento.

Tampouco a técnica é nova, Humberto Eco, no ensaio “Construir o Inimigo” – que dá título ao livro – traz exemplos que vão desde a Roma antiga, passando pelo antissemitismo, xenofobia, sem faltar, é claro, a “mulher”: “para o macho que governa e escreve, ou que escrevendo governa, desde o início a mulher foi apesentada como inimiga” (página 21, Ed. Record, 2021). Sugestão de leitura para ver como Eco vai ligar o surgimento da ética, não para fingir que o diferente não é meu inimigo, mas para me colocar em seu lugar, buscar entendê-lo.

Mas é o trecho “mulher como inimiga” que vem ao caso. Em que pese a importância da discussão e combate ao machismo em todas as instâncias da vida, não é o “pelo no sovaco” mas o “mulher como inimiga”, a misoginia, que vem ao caso no momento. Vem por duas ações que foram matéria neste matutino nos últimos dias (também disponíveis no “site” da Câmara Municipal).

A primeira tratou da entrega do relatório bianual da Procuradoria Especial da Mulher da Câmara Municipal de Piracicaba ao presidente do Legislativo (07/06) e a segunda sobre tratativas para uma campanha envolvendo o Senac, contra a violência à mulher (15/06). Conforme a matéria, o relatório será digitalizado e ficará disponível para consulta (aguardo com interesse!)

Contardo Calligaris, co-autor ao lado de Maria Homem do livro “Coisa de Menina?”, tem entre suas pesquisas o porquê de muitos feminicídios ocorrerem tanto tempo depois da separação, às vezes anos. A motivação vai além do ciúme doentio – não é o assassinato da companheira, por ciúme, no ato da descoberta, do abandono. É o assassinato da companheira semanas, meses, mesmo anos depois. Freud e companhia explicam? Explicam. Há que ler Calligaris e Homem, ler o relatório. Na segunda matéria, fico sabendo que os números chegam a um feminicídio por mês. Gravíssimo!

Fecho com um trecho do livro “os judeus e as palavras”, de Amós Oz e Fania Oz-Salzberger – e que me parece particularmente apropriado: “seis mulheres talentosas trouxeram Moisés ao mundo e o mantiveram por aqui”, sua mãe e irmã, duas parteiras que inspiraram sua família, a filha do faraó e sua criada. Os autores concluem: “quantos homens judeus notaram, no decorrer desses longos milênios, que devemos o maior filho e líder da nação à engenhosidade e coragem de quatro mulheres hebreias e duas egípcias? E onde estava exatamente o pai Arão? Tomando um trago no bar?” (página 70, Ed. Cia das Letras). O final é delicioso e resume o que se encontra no cardápio de “inimigos” de que fala Eco: estrangeiros, escravos, miseráveis, mulheres. Atualizo a pergunta: quantos de nós notamos? Os cartazes que virão da campanha também estarão nos bares, espero que aí notemos.

Arrisco, sem ironia: será que essas seis mulheres tinham cabelo no sovaco?

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Sergio Oliveira Moraes, físico e professor aposentado da Esalq/USP

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