Essa coisa de estereótipos

Brasileiro que é brasileiro é danado para botar apelidos. Não é? Acho que essa tara pela troça abusiva meio que nasce de outra tara também bem brasileirinha: a paixão pela preocupação desnecessária com o estereótipo alheio. Aliás, nesse sentido, às vezes acho também que o povo do interior supera o da capital na fixação pelas perversões linguísticas e no botar reparo no “como é o do outro”. Apenas acho. Aliás, isso pode ser um autopreconceito pleonástico comigo mesmo (com o perdão da brincadeira). No entanto, que a cafonice da depreciação verbal encontra na vida interiorana os ecos de uma percepção limitada sobre o existir eu não tenho a menor dúvida.

Meu pai, que trabalhou algum tempo em Tietê, dizia que no antes a cidade era pródiga em por apelidos – e nem mesmo os “forasteiros” escapavam deles (fico aqui pensando a quem a cidade de Tietê, lá pelos idos da primeira metade do século passado, classificava como forasteiro). A situação, como meu pai contava, chegou a tanto que um viajante – de passagem rápida pela cidade – sempre que se preparava para sair do hotel em que estava, a fim de fazer qualquer coisa na rua, botava a cabeça para fora do quarto (pela janela) e espiava rapidamente se havia alguma criatura na praça capaz de lhe pregar um apelido. Coitado. Como escapar da língua maledicente da glosa mole do povo? Não deu outra – o vai e vem na janela lhe rendeu o apelido de cuco.

Talvez a ideia de superioridade, de soberba pura mesmo, esteja na raiz genética dos apelidos e da classificação das pessoas pelo estereótipo delas ou pelo que delas supomos. Mais do que isso, em tempos de patrulha do politicamente correto a observação preconceituosa agora vem se travestindo e se escondendo atrás do bom e velho eufemismo. Eu que o diga. Outro dia, numa consulta a um neurologista, o “doutor”, associando a dor que me acometia e me vitimava pela enxaqueca ao fato de ser eu uma pessoa gorda me disse: “precisamos considerar que o senhor não está na sua melhor forma…” Adorei! Agora, toda vez que me atrevo a subir numa balança me tranquilizo e digo a mim mesmo: “o senhor (só) não está na sua melhor forma”. (O “só”, nesse caso, é o politicamente correto que exerço comigo).

Num exame de ultrassom, também há pouco, estando eu vestindo aquele roupão tipo minissaia de hospital – aqueles abertos nos glúteos (eufemismo necessário para evitar reclamações de alguns leitores) – ouvi da médica que me atendia a ameaça penetrante: “o senhor sabe bem por que o senhor está assim, não é?”. Gelei. Fiquei pensando se o “assim” por ela proferido se referia à minha obesidade, à minha dor ou a minha ridícula figura posta de bruços numa maca, vestindo uma camisola azul aberta nos “glúteos”. Depois dessa acolhida generosa por parte da médica (a ironia também é uma figura de linguagem das mais deliciosas) ela completou, menos romântica, colocando o ultrassom na minha coluna: “que coisa” – e aí eu não tive dúvidas e intui logo que esse “coisa” era comigo mesmo.

Em Campinas, dia desses, num sebo, eu estava abaixado atrás de uma prateleira procurando um livro quando ouvi alguém dizer, do outro lado: “olha lá o careca”. Pior. Como não respondi, o cara repetiu: “ô, careca. Não adianta fingir, não. Tô te vendo”. Achei demais! Que cara bacana. Depois, resolvi entrar no jogo, até por que vi que ele não era lá muito alto (não que eu atente para o estereótipo dos outros, é claro). Me levantei e olhei o cidadão de cima para baixo e mandei de pronto: “está procurando a Xuxa, baixinho”. O rapaz sorriu desconcertado – certamente descobrindo que eu não era o careca que ele imaginava que fosse. Aí, para descontrair, relaxei: “essa coisa de estereótipo é meio chata, né?”  Acho que ele entendeu. E se foi. Aliás, nunca mais o vi por ali.

 

Esta semana, soube que chamaram algumas pessoas a quem conheço de maneira pouco elegante – para não dizer grosseira, pouco profissional, desnecessária. Me incomodei. Não que eu seja fiscal de avaliação alheia – mas a arrogância é um espelho que me incomoda. Depois, entendi que talvez não tenha havido maldade – e que talvez o “avaliador’ deva apenas ter deixado vir à tona sua verdade interiorana velada (olha o estereótipo aí de novo, perdão!). Em todo caso, achei melhor não contar aos meus conhecidos sobre o que ouvi falar deles (sem eufemismos, resolvi não fazer fofoca) para evitar cizânias (eufemismos são ou não são lindos?). Para diminuir minha implicância com a situação e não perder a poesia, me coloquei no lugar deles e me lembrei do poeta Manoel de Barros. Então, repeti baixinho para mim: “por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado. Sou fraco para elogios”.

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Alexandre Bragion é cronista desta Tribuna deste 2017

 

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