Escravidão longa

 

Camilo Irineu Quartarollo

 

Mesmo com o suor do rosto, homens e mulheres se dedicam na academia para um corpo sarado. O próprio Deus fez o mundo em seis dias, para descansar no sábado.

Porém, sob o regime de escravidão, uma senhora negra foi resgatada no ano passado, depois de trabalhar para a mesma família por setenta e dois anos com privações, sem liberdade, em Vassouras-RJ. O Ministério Público do Trabalho considerou este caso o de exploração mais longa do Brasil.

Em todo o país verificam-se casos de trabalho forçado, jornada exaustiva, servidão por dívida e condições degradantes, como o caso recente e notório dos trabalhadores confinados numa vinícola do Sul. Essas pessoas eram compelidas a jornadas exaustivas sob abusos, submetidas com espancamentos, choques elétricos, spray de pimenta e alvejados por balas de borracha, nessa famosa vinícola. Uma vergonha!

Apesar da Lei Áurea, de loas à princesa e das boas senhoras, a escravidão se incrustou na sociedade brasileira, pela porta da cozinha e serventia dessa casa, no racismo oculto que se manifestou em situação concreta no caso noticiado da idosa de oitenta e seis anos. A escravidão antiga tinha a Lei do sexagenário – o cativo que chegasse aos sessenta anos podia sair da senzala. Nem essa lei foi alcançada pela idosa na escravidão moderna.

O trabalhador sonha com a aposentadoria, achando que a saúde será a mesma, mas os planos sobem de faixa e, a cada “reforma” de previdência, se põe mais anos a dever que os dos sexagenários do século XIX.

Se alcançada, a aposentadoria não é suficiente a muitas avós que continuam a fazer faxina, entregar panfleto, entrar na fila do osso e das terceirizadas, resistir na fila do SUS, a balançar empoleiradas no ônibus até um ponto distante, nessa alameda de flores tristes, baldias, empoeiradas e sonâmbulas.

Nos últimos anos e das ditas reformas alguns políticos de Direita se põem a falar bobagem e até a negar a escravidão negra ou sua modernização camuflada, e dizem que as leis tem de proteger as empresas, não os trabalhadores. Ora, desde Hamurabi, a Justiça protege o fraco e para evitar, justamente, a escravidão de um humano por outro.

Na nossa fatídica reforma trabalhista discutiam que se devia deixar que o trabalhador “negociasse diretamente com o empregador”, sem o sindicato ou leis trabalhistas! Ora, na Justiça, as partes são representadas por advogado, porque o cidadão comum não tem o conhecimento jurídico suficiente de defesa, se não puder pagar o Estado lhe dá um defensor. E, repito, diziam que o próprio trabalhador podia negociar direto com o empregador suas condições salariais!

Além das vexações costumeiras, pobres deste século têm de se preocupar com o guarda da esquina, com as “otoridades” vigilantes que põem um uniforme terceirizado para fazer averiguação pelos supermercado, a perseguir nossa gente nas sombras desse ódio secular, sob o relho de feitor moderno.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, ensaísta, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

 

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