O começo e o fim

José Renato Nalini

 

À civilização a que pertencemos costuma-se denominar “cristã”. Isso porque alicerçada sobre os ensinamentos de um homem chamado Jesus Cristo. Sua existência histórica é indiscutível e aquilo que fez em apenas três anos mudou os rumos da humanidade.

A estupenda “História das origens do Cristianismo” foi escrita por Ernest Renan, em sete volumes, dos quais o primeiro é a Vida de Jesus. Renan ia ser padre. Passou por três seminários, até que perdeu a fé. Nem por isso deixou de acreditar em Cristo.

O último capítulo desse primeiro volume é de leitura necessária para todos. Crentes e descrentes. Contempla a figura do Cristo de maneira a acrescentar méritos ao fundador da Igreja e com a menção a ângulos nem sempre objeto da observação costumeira. Diz, por exemplo: “A obra essencial de Jesus foi criar à volta de si um círculo de discípulos aos quais inspirou uma dedicação sem limites, e em cujo seio depositou o gérmen de sua doutrina. Ter-se feito amar, a ponto que depois da sua morte, não cessaram de o amar, tal foi a obra prima de Jesus e o que mais assombro pôs nos seus contemporâneos”.

Com efeito, quem conviveu com Jesus mudou completamente a sua existência. Sua doutrina foi tão pouco dogmática, que nunca pensou em documentá-la. Pois o “Seu discípulo não era aquele que acreditava nisto ou naquilo, mas o que se prendia à sua pessoa e o amava”. Com isso, ele é iniciador, na Terra, de um espírito novo. Renan, embora agnóstico, afirma “que, na verdade, a religião de Jesus é a religião definitiva. Fruto de um movimento das almas perfeitamente espontâneo, despido na sua origem de todas as peias dogmáticas, tendo lutado trezentos anos pela liberdade de consciência, o cristianismo, apesar das quedas que se seguiram, ainda colhe os frutos dessa excelente origem. Para se renovar, basta-lhe voltar ao Evangelho”.

Esta concepção de renovação deveria estar constantemente na consciência de todos os que se consideram cristãos. Como foi que o bicho-homem, apesar de se dizer “cristão”, atua como se nunca tivesse tomado conhecimento da verdade evangélica? Como é que a enorme parcela do planeta que se diz adepta do Cristianismo consegue se portar tão contrariamente ao que Jesus ensinou como o correto?

Jesus Cristo “foi o primeiro que proclamou a realeza do espírito; foi o primeiro que disse, ao menos pelos seus atos, ‘O meu reino não é deste mundo’. A fundação da verdadeira religião é indubitavelmente toda a obra sua. Depois dele, só há que desenvolver e fecundar”.

A responsabilidade moral do cristão é imensa, já que “Cristianismo veio a ser, por esta forma, quase sinônimo de religião. Tudo o que se fizer, fora desta grande e boa tradição cristã, será estéril”. Com isso, “Jesus será sempre em religião, o criador do sentimento puro; o Sermão sobre a montanha não será excedido. Nenhuma revolução fará que não nos liguemos em religião à grande linha intelectual e moral em cujo começo brilha o nome de Jesus”. E parece que falando dele mesmo, proclama Renan: “Neste sentido, somos cristãos, mesmo quando nos separamos sobre quase todos os pontos da tradição cristã que nos tem precedido”.

Li, na releitura da “Vida de Jesus”, que um dos primeiros brasileiros a lerem a “História das Origens do Cristianismo” foi o precursor do abolicionismo, Luís Gama, que disseminou o seu conteúdo em seu vasto círculo relacional. Sua devoção à liberdade dos cativos pode ter outro significado, agora ancorado na fraternidade cristã, pois Luís Gama também se encantou com Cristo. E quem não se encanta, se descobre o inefável conteúdo amorável de Jesus? Algo que Renan também enfatizou: “esta grande fundação foi, sem dúvida, a obra pessoal de Jesus. Para se fazer adorar a tal ponto, era preciso que fosse adorável: o amor não nasce sem um objeto digno de o incitar, e quando mesmo nada soubéramos de Jesus, senão a paixão que inspirou a todos os que o cercavam, ainda deveríamos afirmar que foi grande e puro. A fé, o entusiasmo, a constância da primeira geração cristã não se explicam senão supondo na origem de todo o movimento um homem de proporções colossais”.

Nós, cristãos, temos de nos questionar: estamos sendo dignos do amor que Cristo devotou a toda a humanidade?

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José Renato Nalini é Diretor-Geral da Uniregistral, docente da Pós-graduação da Uninove e Secretário-Geral da Academia Paulista de Letras (APL)

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