Julinho da Adelaide

Camilo Irineu Quartarollo

O moço risonho de 78 anos ganhou da esposa uma gravata rosa em Portugal. Ganhou, não “levou gravata”, como se diz aqui. Entretanto o prêmio dele foi protelado pelo ex-presidente desde os seus 74 fevereiros. Chico Buarque ganhou o prêmio Camões de Literatura em 2018 e o recebeu em Portugal em 2023. O presidente que assinou foi o filho da dona Lindu.

O antigo presidente parecia ignorar na mesma gaveta com seus passaportes e sigilos para eventual assinação. Talvez estivesse esperando a caneta Chopard prateada com pedras incrustadas do terceiro lote de joias da Arábia Saudita e poupar sua Bic azul. Na ocasião solene o escritor lançou mão de uma figura literária em repúdio ao ex-presidente, não o referindo cujo nome não faz falta. Disse-o e bem: … O ex-presidente teve a rara fineza de não sujar meu prêmio Camões, deixando o espaço em branco para o nosso presidente Lula assinar”, e, “foram quatro anos de um governo funesto, que duraram uma eternidade – o tempo parecia andar para trás.” – senti isso também.

Ironia é uma figura de linguagem, a usa-se para dizer o contrário e para os contrários pouco inteligentes não entenderem de todo. Se os contrários forem muito ignorantes não entenderão mesmo fatos notórios, com toda a fineza… Se Deus fez o mundo pela palavra, por que usarmos as armas sujas de Caim? Pelas palavras foi feito e pelas palavras se mantém limpo.

O uso da ironia se aplica bem a fatos notórios. Muitos leem e tomam Machado de Assis ao pé da letra, como a bíblia que é rica em figuras de linguagens, mas não óbvia. Os compositores da época da ditadura tinham de ser muito bons para driblá-la, assim como os jornalistas combativos. Escreviam quatro ou cinco versões, pois sabiam que a censura ia cortar palavras, frases ou o texto todo. Entretanto, quatro ou cinco versões bem escritas fica difícil de escolher e estas virariam muitas outras.

Chico Buarque é cantor, mas também literato. O filho do Aurélio, do pai dos burros – do Aurélio Buarque de Holanda. É do seu genitor a dita de que o brasileiro é um povo cordial, mas não como se entende hoje – por fineza. A cordialidade brasileira é passionalidade para o bem ou para o mal – somos levados pela pulsação. Pelo que vimos Chico é mais que cordial e sob a batuta paterna aprendeu muito pela inteligência do coração e do bom humor, pois o Julinho da Adelaide é filho da melhor cordialidade brasileira bem estampada na boa ironia, pela qual todos entenderam.

A ABL tem dado cadeiras de escritor a personalidades da dramaturgia e música. A meu ver, inadequadamente. Desta vez sim, Chico imortal nas letras e não o é somente por letras de música, entretanto não sabemos se aceitará essa cadeira. Por fim, acho que devia haver academias próprias e conexas de letras, dramaturgia e música.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, ensaísta, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

 

 

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