Se eu fosse índio

Camilo Irineu Quartarollo

Nasceria curumim batizado pela cachoeira, aprenderia a sonhar com os peixes, trilharia as matas. Lavaria minhas lágrimas em águas doces e me secaria ao sol com os calangos. Escreveria nas pedras da aldeia e apagaria os poemas de Anchieta na areia. Minhas noites seriam na aldeia, dormiria com a lua ou na dança comunitária deles, ao som dos espíritos. Nenhum algoritmo me alcançaria, mas os grandes sonhos que contarei no amanhecer. Dormir na aldeia e nos braços da natureza, no silêncio das corujas, nos sonhos que descem das estrelas e do rio que murmura uma dor. Não poria gravatas mais, nem trocaria de calças, não sujaria os colarinhos brancos, nem desbotaria minhas meias.

Sem as folhinhas de quitanda eu marcaria o tempo na minha tenda como a chegada das luas frias, das luas quentes, das luas das grandes folhas, das luas das folhas caídas, das luas das folhas amarelas, das folhas que caem, tempo das folhas grandes, da lua dos brotos, da lua em que os gansos perdem suas penas, da lua da partida dos gansos, da lua de postura dos gansos, da lua das árvores que estalam, da lua cheia, da lua do frio forte, da lua em que a neve cai nas tendas. São ciclos mais integrados que nossos meses riscados, é o tempo do índio, todas as estações.

Aliás, se eu fosse indígena na América do Norte meu nome poderia ter sido: Touro Sentado, Touro Alto, Nariz Romano, Nuvem Vermelha, Lobo Solitário, Pássaro Saltador, Corvo Pequeno, Cauda Pintada, Lançador do Laço, Chaleira Preta, Urso Magro, Um Olho, Cabeça de Águia, Urso Forte, Antílope Branco, Cocar de Guerra, Perna-na-Água, Jovem-Medroso-de-seus-cavalos, Faca Embotada, Urso Branco, Dez Ursos dos Comanches, Mulher Amarela, Cavalo Pequeno, Urso Preto, Lua Preta, Urso Veloz, Folha Vermelha, Olha-Para-Trás, Touro Branco, Alce-em-Pé, Urso Veloz, Pé Ligeiro, Cavalo Alazão, Cavalo Doido, Espinha Alta, Águia Amarela, Velho do Trovão, Urso Amarelo, Casco de Ferro, Perna de Peru ou Coelho-que-dorme.

Esses nomes e ciclos são registrados por Dee Brown em sua obra Enterrem meu coração na curva do rio, leitura apaixonante da extinção deliberada desses povos. A maioria dos topônimos dos EUA conservam o nome das nações originárias. O índio está ligado ao habitat e à aldeia. Para eles os nomes não têm sentido se não caracterizar a pessoa, por isso eles chamam o próprio Custer de Traseiro Duro, devido ao soldado andar dias a cavalo em perseguição.

No Brasil, os nomes indígenas se fazem acompanhar pelo sobrenome da nação, tais como Ailton Krenak, Davi Ianomami ou a ministra Sonia Guajajara. Entretanto, os indígenas têm os nomes na língua nativa dado numa cerimônia. Kaká Werá recebeu num ritual de iniciação com os Guarani na aldeia Krukutu, onde conviveu com os guaranis por doze anos. Werá Jekupé é trovão na língua Guarani.

Como índio não sou, rendo-me a este dia, 19/04/2023, para lamentar a destruição daqueles que mantém a natureza viva.

 

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, ensaísta, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

 

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