História Antiga

Naquele tempo, eram dois em um? Mistério. Eram juntos – pés e patas na riqueza do nada – dividindo o pão endurecido (na mais pura concretização da etimologia da palavra). E o eram. Companheiros de calçada, de caminhada sem ponto de partida ou de chegada – tendo postado diante dos olhos e do focinho a fé dos que adentravam a celebração na igreja feita catedral imensa que soberba da praça. Depois da entrada solene, o que ouviam? Eram cantos cantecantados dentro do templo? Muito mais. Ouviam o verbo divino sonoro que forjado, esquecido dos deuses e deusas do chão da vida. Comunhão? Do lado de fora, feito adro de história antiga, os dois-mais-que-um formavam unidade sagrada subcutânea: intrapelos, intrapeles, intracorpos – sentados à margem do para sempre.

No bocejo longo do cão, a atitude sempre beata da beatitude. Santidade? São Francisco? São Domingos de Gusmão? Domini Canisgloria a Deo! Nas mãos do humano, as presas do homem: um pote com a água a ser dividida e o pão ázimo da partilha. Latidos se juntavam às vozes que ecoavam da igreja e às buzinas e motores dos carros. O jardim da praça, agora, feito ágora ideal, Monte das Oliveiras, parnaso. O homem ergueu um pote d’água à altura da cabeça – talvez a conferir se no fundo dele nada havia de mais sujo. O amigo canino observa. Depois, como se repetisse uma tradição que mal conhecia, o homem faz o mesmo com o pão. E o agradeceu – talvez a Deus – pelo alimento a ser dividido com o amigo-irmão.

A sarjeta se fez ceia. Nela, apenas os que sentiam a dor das almas nas sombras da solidão. O homem e seu cachorro comeram e beberam naquela noite – o que em si já é era um milagre. Seus espíritos e corpos transmutaram-se na imensidão do existir. Era o fartarem-se de um amor genuíno, gratuito, doído de tão natural – de graça? Plenitude. No templo, os fiéis cantavam. Outros seres alados que se achegaram aos dois. Vinham de jornadas semelhantes, de travessias desérticas pelos centros comerciais, vencedores de tentações diabólicas que duravam bem mais que quarenta dias e quarenta anos. Depois, se fizeram em muitos – irmãos do nada ter, do nada a ser: companheiros em comunhão.

A conversa se animava. Uma garrafa santa surgiu divina dentro de uma sacola plástica de hipermercado. Mãos e mãos. Bocas e bocas. E a purificação de corpos e espíritos seguiu seu rito. Seriam, então, doze ou treze entre eles? Quem saberia? Uns barbudos, outros sem túnicas – porém todos irremediavelmente iguais. O culto no templo chegou ao fim.  Apáticos, os apóstolos postaram-se em pé para participarem da saída dos fiéis – homens santos da Igreja – que na alegria da fé talvez lhes dessem algumas moedas (trinta, quem sabe). O povo santo passava. Passava. Passou.

Naquele tempo? História antiga. Barriga vazia. Sangue transformado em sono. Em instantes, os apóstolos – todos que todas – dormiriam o acalentador repouso dos justos – descanso feito de canais fluidos para outros mundos (para mundos melhores, mais honestos, mais perfeitos, mais justos). Velando o sono de todos, apenas o cachorro saberia da lua a espelhar a páscoa de sua própria existência (canina que humana), divina que terrena, etérea porque religiosamente real.

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Alê Bragion é cronista.

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