Porque amanhã é sábado

Crônica de um harpista

No fundo sem fundo do palco, o harpista espera. Suas lentes míopes veem o corpo da orquestra por entre as cordas de sua harpa-embarcação. Seu momento de glória, sua sede e desejo, sua exposição humana que sonora aguardam a hora de dedilhar sonos feitos de sonhos e sons.

Escondido atrás de um mar de violinistas que se movem como vaga agitada e virtuosística, o harpista é quase um expectador em ansiedades – um náufrago aguardando sem esperanças um resgate cada vez mais distante.

Às vezes o harpista deseja morrer. Depois, desiste da ideia temendo que, se lhe acolherem no céu, talvez tenha de ouvir os anjos a tocar harpa pela eternidade afora. Os violinos executam outra passagem difícil. Trompetes, trompas e trombones tonitruam no ar trovōes de virilidade. O percussionista encerra uma frase com um fortíssimo golpe dos pratos. O harpista quase cai. Suas mãos abraçam a harpa como se agarrassem o mastro de uma jangada. Harpa e harpista balouçam, por muito pouco não emborcam e vão a pique. Mas resistem. A tormenta parece diminuir. Quantas outras virão?

Disfarçando estar recomposto, o harpista espera. O público olha com admiração para os violoncelos postados junto à ribalta. O harpista se lembra de como um dia também quis poder estar sob as luzes. A mãe, porém, lhe cobrava uma profissão mais óbvia e rentável. Os violoncelos cantam solenes. O harpista cogita, por um largo segundo, que talvez sua mãe estivesse certa – talvez devesse ter sido ele um contador, um bancário ou um corretor de imóveis. A orquestra explode. O harpista é todo silêncio e disfarce.

Talvez o carro estacionado lá fora esteja parado em lugar proibido outra vez – parar em qualquer vaga mais próxima a fim de descarregar a harpa já lhe rendeu um tapete de multas. O harpista tenta se lembrar onde parou o carro. O concerto avança sem conserto. O harpista espera. Quem sabe haja tempo de ir fumar e voltar com folga para tocar a vida que lhe cabe. O harpista hesita. O prazer vale o risco? O harpista desiste.

Súbito, o maestro lhe convoca com os olhos. O harpista se ajeita. Dentro de poucos compassos, a redenção. Dedos curvados sobre as cordas, mãos em oposição – cravadas uma ante a outra – o harpista parece assumir agora a dignidade de quem maneja um wind surf sobre o oceano azul dum domingo de sol. A orquestra faz piano. O maestro o chama com os olhos (novamente) – antecipando sua entrada. O harpista lembra dos discos de vinil comprados nos sebos – O Quebra Nozes, de Tchaikovsky, os concertos para flauta e harpa de Mozart e de Villa Lobos. O harpista agora se lembra onde parou o carro. Certamente, em breve receberá outra multa.

 

O maestro dá a entrada. A orquestra silencia. O harpista sola. Músicos e plateia se entreolham como se ouvissem a um espectro. Uma criança espicha os olhos para tentar descobrir de onde vem o som. Um compasso. Dois. Três. Talvez o céu não seja assim tão ruim se vivido sob a trilha sonora dos anjos. Talvez o próprio criador se arrisque em alguns dedilhados ao instrumento, em fins de tarde fagueiras entre nuvens. Quatro compassos e os metais retornam a carga. O harpista se esforça para seguir ouvido. Violinos, violoncelos, violas, flautas, oboés e fagotes engolem o som divino – e o harpista encerra seus compassos junto às pedras ao final da praia. Se a multa vier, este mês vai ser difícil pagar o IPTU.

O concerto termina. O teatro se esvazia em poucos minutos. O harpista segue encalhado – tentando puxar seu instrumento de volta ao carro. Esta semana, pensa, deve aceitar alugá-lo para um comercial de sandálias femininas ao estilo romano. Talvez os anjos se ofendam com isso. Mas é preciso pagar o IPTU – e a multa, que certamente virá.

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Alexandre Bragion é cronista deste matutino desde 2017.

 

 

 

 

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