Sergio Oliveira Moraes
Notícias do trabalho análogo à escravidão me trouxeram de volta o livro “Uma História da Energia” (de D. Hémery, J-C Debier e J-P Deléage, Edunb, publicado em 1993) – em particular o trecho sobre o estatuto jurídico dos escravos na agricultura de Roma antiga: “os instrumentos são dotados da palavra, semifalantes ou mudos. À categoria da palavra pertencem os escravos, à semifalante os bois, à muda as carroças”. Escreveu Varron em seu tratado de agronomia (Res Rusticae I, 16). O que mudou?
No mesmo trecho, os autores citam Catão (De Agricultura, XVI), que dá conselhos sobre a alimentação dos escravos. Na respectiva nota, a conta: “a ração do escravo acorrentado, no mesmo período do ano (inverno), era de 2 kg de pão por mês, ou seja, um pouco mais que um pãozinho de 50 g por dia, donde a necessidade de complementação (N.R.T.)”. A complementação Catão inclui no “cardápio”: “para acompanhar o pão dos escravos, reserve a maior quantidade possível de azeitonas tombadas das árvores e dê-lhes hallec e vinagre”. Na nota, a explicação: “o hallec é a carne de pescado que ainda não atingiu o estágio da decomposição líquida completa.” O que mudou?
Concluem os autores: “como produtor, o escravo é reduzido aqui a seu papel de máquina; como mão de obra, ao de mercadoria ordinária; e como consumidor ao de gado estabulado.” O que mudou?
Os trechos referem-se ao trabalho escravo na agricultura, nas minas era ainda pior. Sim, é possível. No nosso país, o maior número de casos de trabalhadores em situação análoga à escravidão, ou escravidão moderna (isso mudou, atualizou-se o nome) encontra-se no campo, mas também os há na cidade. E nem o Rio Grande do Sul, que tem nos chocado nos últimos dias, é o estado primeiro na lista macabra. Minas Gerais em 2022, 1071 pessoas foram resgatadas dessa condição, 41,7% do total observado no Brasil e 37,8% maior do que o observado em 2021 (777 pessoas) no mesmo estado. Mas não basta a frieza dos números, é preciso conhecer a situação dos explorados desde que as caravelas aqui chegaram. É preciso História, Geografia, Matemática, Sociologia, Filosofia… Física e criticamente. Faço parte disso, goste ou não.
Por isso apoio os estudantes e profissionais da educação que no dia em que escrevo, 15 de março, protestam contra o novo ensino médio, pedindo sua revogação. Estão certos. Precisamos do conteúdo que nos torne críticos, capazes de olhar para um mundo complexo com a coragem que vem da educação, da arte, da cultura, do esporte, do lazer. Infelizmente, o novo modelo é “apetitoso” para interesses econômicos governamentais e mercantis, significam menos investimento em educação, além da sempre útil ignorância. Vale buscar o fio dessa meada em 2017.
Leio a manifestação de um jovem estudante do ensino médio de uma escola estadual. Reclama que no 3º ano só tem duas aulas de português e duas de matemática por semana (em compensação tem aulas de “gírias nas redes sociais” e “criação de personagens”), pergunta que chance terá no vestibular? Completo, que chance terá de adquirir o gosto pela leitura, compreensão de texto? De indignar-sediante da exploração do outro? De entender o alcance de expressões como “aproveitar para passar a boiada”? De entender que todas as vidas importam?
Há que apoiar a luta por uma educação que traga os conteúdos necessários para a complexidade dos tempos. Mas que nos faça abrir os olhos e enxergar adignidade que todas as vidas merecem, enxergar o outro “Nas escolas, nas ruas /Campos, construções”. Senão, nada vai mudar.
Sergio Oliveira Moraes, físico e professor aposentado Esalq/USP