Nem pão nem circo

Camilo Irineu Quartarollo

 

Perdoe-me São Benedito, mas na cozinha não tem caldeirões mágicos, há que se seguir a receita e a experiência de outros, sentir o processo do fogo e a natureza do alimento. Entretanto, as pessoas da cozinha sabem muito bem que podem aumentar uma omelete se puser farinha, refogar uma mistura de seralha com ovos, dobrar a massa dos pães se amassados com suor e paciência por quinze minutos. No trato das panelas, o que era cru e indigesto torna-se alimento. Na cozinha acontecem milagres, mas pelo aprimoramento, não por mágica.

A partir do Concílio de Niceia, em 325 d.C., o cristianismo foi encampado por Constantino na forma de Cristandade. Os rituais e símbolos migraram para a religião do Império ou foram sincretizadas, confundindo-se a figura real de Jesus, como se tirassem de Jesus um molde palatável de Cristo.

Elevado a divindade, Jesus assume nas mentes e corações pelo que era, mas também pelo que não era. Jesus não era um dos deuses greco-romanos, com poderes sobrenaturais e brigas de titãs pelo poder no Olimpo. Esse entendimento fantástico de milagre leva muitos a acharem que Jesus tem o prodígio de multiplicar pães num passe de mágica.

Pães eram dados até nos espetáculos de gladiadores no Coliseu de Roma – pão e circo. Espetáculo para sádicos, não para seres compassivos. Era uma distração torpe para camuflar os problemas reais do Império e de muitos flagelados pela guerra, fome, peste e morte, as quais são representadas nas figuras dos quatro cavaleiros do Apocalipse.

A campanha da fraternidade sabiamente pauta a questão da fome no Brasil. O nome da perícope não é Multiplicação DE pães, mas Multiplicação DOS pães. A preposição ‘de’ é ampla, genérica, mas quando se diz ‘do’ ou ‘dos’ é algo específico, estes são os pães que os discípulos levavam consigo para comer no caminho.

O teólogo Adolf Pohl, no livro Evangelho de Marcos – comentário Esperança, analisa a passagem e informa que era comum entre os judeus carregarem pães escondidos em suas vestes. O milagre é possível quando se tem olhos de ver o que parece invisível e mesmo o que parece imperceptível. Por isso, disse Jesus: Deem vocês mesmos de comer, ou melhor, partilhem entre vocês os pães que têm, é a hora de fazê-lo.

Deixar de repartir pela alegada multiplicação mágica é uma forma bem cômoda a quem não quer fazer o mínimo e tem sua barriga cheia. A força do evangelho está na compaixão, no respeito a vidas e na partilha, tanto material quanto espiritual. Se o cristianismo estivesse alienado da realidade seria apenas uma seita, um grupo de fanáticos querendo aparecer, ganhar cliques e monetizar. E seria, pasmem, apenas a Cristandade de Constantino!

O Brasil vive na pendência do milagre, não o da multiplicação dos alimentos, mas da redistribuição destes aos famintos, através de programas, políticas públicas ao pé da cozinha, pois produzimos o suficiente e o necessário.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, ensaísta, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

 

 

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