A invenção do Oriente e a questão do outro

 

Armando Alexandre dos Santos

 

O Prof. Erich Stephen Gruen (1935-), docente de História Antiga da Universidade de Berkeley, na California, teve seu mérito científico reconhecido não somente nos Estados Unidos, mas também pela Áustria, seu país natal, do qual recebeu, em 1999, a Austrian Cross of Honor for Arts and Letters.

Mais ou menos na mesma altura em que Gruen fez, na sua trajetória intelectual, a mudança de rumos que analisamos na semana anterior, dois trabalhos de importância fundamental estavam sendo dados a público, e ambos se constituíram obras de referência para a elaboração e o estudo da alteridade. Refiro-me, em primeiro lugar, à bem conhecida obra de Edward Wadie Said (1935-2003), professor de Literatura da Universidade de Columbia, que lançou em 1978 o livro “Orientalismo: a invenção do Oriente pelo Ocidente” (São Paulo: Companhia das Letras, 1996), no qual estudou a evolução do conceito de Oriente processada artificialmente no Ocidente no período em que se constituíram os impérios coloniais europeus do século XIX. A segunda dessas obras de referência é “A conquista da América: a questão do outro” (São Paulo: Martins Fontes, 2003), do filósofo e linguista Tzvetan Todorov (1939-2017), natural da Bulgária, mas estabelecido na França. Nessa obra, Todorov desenvolve, a propósito das viagens de Colombo e seus contatos com os povos da América, o conceito de alteridade, ou seja, a visão “do outro”.

Em suas análises, tanto Said como Todorov tomam como fundo de quadro a etnicidade, ou seja, a consideração dos fatores étnicos e raciais na apreciação e no julgamento “do outro”. Ambos viviam em culturas fortemente impregnadas pelo chamado eurocentrismo de bases étnicas consolidado no século XIX. Estudiosos imbuídos com essa mentalidade tendiam a interpretar o passado, um tanto anacronicamente, julgo eu, imaginando que os antigos tinham todos a mesma convicção, dominante na Europa do século XIX, de que a “raça branca” europeia era absolutamente superior aos outros povos de etnias diferentes. Voltaremos a esse ponto mais adiante.

A necessidade psicológica de um grupo social firmar a própria identidade diferenciando-se do grupo maior e mais forte dentro do qual se vê inserido incentiva a formação de memórias coletivas, compartilhadas. O mesmo se dá com grupos sociais dominados politicamente ou pela força por potências vencedoras, que tendem a incorporar a si os vencidos, fazendo com que esqueçam de suas raízes. O compartilhamento de suas recordações coletivas tem enorme importância para grupos humanos colocados nessas situações conservarem sua própria identidade e se afirmarem como tais, sem se dissolverem numa sociedade maior, ou numa sociedade dominadora, em cujo contexto se veem, por força das circunstâncias, insertos. Minorias étnicas, religiosas ou profissionais também cultivam suas próprias memórias coletivas como mecanismo de defesa, assim como por necessidade de sobrevivência e autopreservação.

No caso específico do povo judeu, ao qual pertence Gruen, seu senso de identidade profundo em larga medida se explica pelo compartilhamento de sua memória coletiva. Se não ocorresse tal compartilhamento, ter-se-iam forçosamente rompido os elos culturais que durante muitos séculos e até por milênios resistiram a incontáveis perseguições.

A força da memória compartilhada, sobretudo no caso de grupos minoritários que resistem a fatores externos contrários é realmente enorme. Fenômeno análogo se verifica não raras vezes com grupos de pessoas que saem de seus ambientes nativos e emigram para outros países, de cultura muito diferente da sua. Desenvolvem uma psicologia própria, de alguém que se sente exilado e tende a conservar e até a realçar as características da pátria de origem, como mecanismo de defesa contra um ambiente externo que, mesmo que não se apresente propriamente como hostil, tende a envolver e descaracterizar os que vêm de fora.

 

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

 

Frase a destacar: Minorias étnicas, religiosas ou profissionais cultivam suas próprias memórias coletivas como mecanismo de defesa.

 

 

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