Porque amanhã é sábado – Clarice não disse

 

É bom que se diga: Clarice não disse tanto, nem tudo. Seu texto explícito é genialmente mudo – conquanto esconde no fundo um discurso que nem de perto é afago, esperança ou acalanto. Mania do mundo de por palavras tortas na boca – ou nas letras – dos defuntos. Mania e meninice de querer ler no outro um pensamento tonto que o outro – nem na mais insana e etílica idiotice – jamais disse. E Clarice não disse tanto nem tudo o que dizem que ela disse. Sua escrita seleta carece de senha, carece de letra secreta para acesso à face menos neutra, menos doce, de sua obra em linha reta.

Há de haver esforços para gozá-la – e esse gozo em recompensa se fará não no deleite da facilidade, mas no debute da entrada a um mundo sem clave que, aí sim, não poupa a humanidade de si mesma a ver-se publicamente como um corpo nu deitado na calçada. Há de haver chaves para entrar em sua morada – e uma dessas chaves está no bolso de quem se orienta para além do gosto comum um pouco mais, e desafia a arquitetura aparente de um texto que esconde na carpintaria fechada os sentidos e os gestos de quem erige seus pensamentos como telhados entrelaçados em madeiramento.

Clandestina foi sua felicidade e sua sina. À roda dos desejos mais íntimos e proscritos dos padrões da normalidade burra, Clarice transpôs para o texto toda a clandestinidade dos que sentem em sigilo – a medo, cuidosos e fogosos – e tentam passar a meio, ausentes de todo o mal que jorra do crivo da falsa moral do olhar alheio. Está em Clarice, ou em boa parte dela, o prazer pela vingança – por exemplo –, a sublimação sexual do contato corporal e a (explosão!) condicionante de ações e pensamentos pouco aceitáveis pela “cristandade” – e que se libertam em sua literatura apenas aos olhos dos que se contrapõem às lufadas do vento artificial soprado pela sociedade.

Seu monólogo interior desce em camadas e encontra não o chão, mas o frio úmido do fundo do poço (nova explosão!). Não há escadas, há apenas quedas e subidas surpreendentes que inesperadas calcadas nos arremedos de sentimentos e no (outra explosão!) aceite pessoal de que viver é mal e é sofrimento. Se há alegrias de bancadas ou de bacias expostas na feira-livre das letras e dos dias, ela é falsa (tão falsa!) como a cartomante que garante a Macabea – mediante o dinheiro que intenta tirar dela – que um dia a hora de virar estrela chegaria. Evoque-se então, e urgentemente, que a escrita de Clarice é força, é solidão e sentimentos libertinos, é linguagem que esconde mais que mostra, é desafio de escamar em segredo a pele não exposta (explosão!).

Não há docilidades em Clarice. Sua voz de mulher que empunha sua escrita contra a vida mediada pela masculinidade (filha da) bruta desafia a própria escrita – e bate e se debate na luta que disputa o direito de viver (como se quer) e de escrever (para viver). “Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida” – escreveu ela, assim. Por isso, e cuidando para conhecer de fato o que ela disse, neste pós-centenário de Clarice, leiamos sua obra como se fôssemos também salvar a vida de alguém. Mas saibamos sempre – e em todo caso – que estamos lendo, mesmo, para salvar apenas a nossa.

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Alê Bragion é cronista deste matutino desde 2017.

 

 

 

 

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