O jogo do século

Camilo Irineu Quartarollo

 

Na rua da minha infância, eu chutava qualquer coisa que pulasse e lembrasse bola, até pedra, machucava o dedão a despeito de fazer como o Pelé. O rei descansa entre merecidos louros. Nosso time em campo perde feio. Ah, se soubessem!

Longe dos estádios, minha amiga Yara passava pelo Largo do Arouche, em São Paulo, e se deparou com um homem dormindo na calçada, todo enrodilhado numa bandeira brasileira. Um “patriota”! Quem sabe, talvez não, mas a bandeira estava servindo-lhe de coberta, e no avesso – percebeu ela. Um rapaz se ofereceu para lhe afivelar os sapatos, susto, até que não. Preferiu descer do salto alto e, sem medo, perambulou a pé pela metrópole paulista. Uma praça de farrapos, barracas, drogas e famílias, eis o nosso time em campo nesse primeiro tempo.

A rua pode trazer um ar de liberalidade nesse mundo despersonalizado, onde somos números de estatísticas e morridos seremos somente cadáveres jogados na vala. A quem amamos, porém, seremos eternos pelés, tentando driblar as circunstâncias e faltas da vida na marca de pênalti. A sarjeta é o último reduto da sociedade e o túmulo da civilização, pela falta de políticas públicas.

Órfãos ou não, fugidos da indiferença, desalentados, pais e mães subestimados no relento aprendem o jogo da sobrevivência e a lei da rua e, nesse jogo, morrem sem registros de nascimentos, casamentos, nada, e ainda, sem CPF, invisíveis. Entretanto, auxílios são desviados a quem não têm vergonha na cara – chupins do país e do exterior.

Esse certame da fome é a geografia de um país invisível dentro da nação brasileira mesma, que ninguém quer ver. Dentre os pobres dos faróis com placas, mãos estendidas, rostos na sombra, cabeças baixas, sorrisos pálidos, somos 33 milhões na reserva. Estes não se alimentam. A comida não dá para todos, alimentam os filhos menores, pedem, deixam para almoçar no outro dia, se tiver. Os cachorros, que são partes da família e tão pobres quanto, os protegem no sono da calçada fria.

Na área dos desalentados, temos os que chamam de empreendedores. Ironia, na verdade são entregadores eventuais de lanches e marmitas. Yara, as últimas reformas trabalhista e previdenciária nos jogaram para antes da Abolição neste país.

Na Piracicaba de famílias tradicionais, temos 434.432 habitantes constados no último censo. Destes cidadãos cerca de dez por cento (10%), 44.586 piracicabanos, estão na pobreza ou extrema pobreza, vivendo com 105 reais por mês, registrados no CadÚnico. Esse valor dá para… nada, e ainda tem gente reclamando da “gastança” do governo com o auxílio de 600 reais. Gastança é não dar transparência e se deixar extraviar do destinatário legítimo, pois a necessidade salta aos olhos.

Em Piracicaba temos famílias paupérrimas acompanhadas por ongs e bons samaritanos. A prefeitura tem um serviço de triagem e alguns suportes, podia fazer mais, bem mais.

Ara, vamos virar o jogo!

 

 

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

 

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