A mãe dos peregrinos

 

Camilo Irineu Quartarollo

 

 

O viajante italiano, nostálgico, sofre ao se distanciar da Nápoles amada e enaltecida na canção Santa Lucia Luntana. Comove-nos também outras regiões da Itália e suas canções típicas, dialetos, árias de Pavarotti e o estrugir alegre das tarantelas, ainda que se diga que por lá haja muito bairrismo pela bota do papa. Contudo, fugiam-se das guerras e fome para tentar melhor sorte.

No Brasil colonial, antes da imigração europeia, os ancestrais negros foram capturados do seio da mãe África e cá trazidos sem família, a ferros e ódio. Enquanto europeus tinham sonhos, os africanos tiveram pesadelos terríveis. O deus do branco era ruim, sádico, açoitava gente. A cultura brasileira é predominantemente afrodescendente e desprezada pela visão embevecida de Europa, de um deus barbudo branco e que se diz único.

Se narciso acha feio tudo que não é espelho, o povo quer balangandãs para espantar o mau olhado. Ainda estranham que existam religiões com outros deuses ou fé. Por desconhecer a alma brasileira muitos criminalizam o jeitinho que, na falta de opção, é o modo precário, criativo de se resolver problemas e superar o desalento.

O Brasil é um país dividido pelo racismo estrutural e machismo renitente, o Estado brasileiro não aboliu suas divisões profundas, mas as cavou num abismo de preconceitos tolos e potencial autodestrutivo. Ainda que por açoites e lacerações na vara do verdugo o país desconjuntado foi se rearticulando, mesmo machucado, reconstituindo-se num tipo de fé ribeirinha, de união de vizinhos, como a Cafarnaum de Pedro.

Os pescadores oravam antes da pescaria, contudo na tarrafada sem peixes veio alguma coisa com a qual se assustaram, não era peixe, mas jogaram a seguir por mais duas vezes a rede e retiraram das águas mais duas partes do mesmo corpo, o qual deitaram solenemente no barco. Como por milagre, o rio se encheu de peixes vindos nas redes sucessivamente lançadas.

Levaram a santinha para casa e emendaram as partes. A aparição da santa chamava a atenção de um Brasil dividido. Havia templos exclusivos para brancos e a igreja dos pretos! Havia muitas igrejas suntuosas de brancos, mas a Aparecida estava num oratório simples de pescador, cujo lugar virou centro de culto dos aflitos ou agradecidos. A teologia católica ensina que as aparições de Maria por toda a orbe são manifestações proféticas. A própria princesa Isabel veio presentear com manto e coroa a Aparecida, a quem o povo já consagrara.

É comum aparições e fenômenos numinosos pelo mundo. Os estudiosos da Psicologia profunda dizem que é uma manifestação do arquétipo feminino. Que o sagrado emerge do Inconsciente Coletivo em momentos críticos.

A ciência não nega fenômenos, não adere, mas estuda-os. Entrementes, os peregrinos carregam suas cruzes nas ruas, nos semáforos, nesse encontro da devoção até o altar de um Brasil dividido ainda hoje. Salve, Maria, socorrei-nos!

 

 

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente, escritor, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

 

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