Uma promessa à Belinha

Sergio Oliveira Moraes

 

2018, eleições, nossa cachorrinha Belinha vivia seus últimos momentos. Entrei no canil naquela sexta-feira para fazer a higiene, alimentá-la, tarefas que ela não dava mais conta sozinha – pois da sua dignidade canina, altiva, pouco ou nada restava. Ia transtornado.

Um artigo lido na véspera dava conta de que, em meio a uma carreata de uma campanha política, um cachorro na calçada começou a latir – o que é natural, instintivo, todos procedem assim. De repente, alguém saiu de um carro com uma arma e disparou contra o cachorro, ferindo sua pata. A dona, em desespero, pediu pela vida do animal. Inútil, outro e mais outro tiro. Nenhuma recriminação, nenhum pedido de desculpas do, à época, candidato à presidência (depois eleito) pela atitude terrível do apoiador. Gostaria de crer que ele não ficou sabendo – gostaria.

Olhei para você Belinha, no canil de casa. Você levantou um bocadinho a cabeça, me reconheceu, um leve cumprimento pelo enfraquecido movimento da cauda. Naquele momento eu não era Ulisses, nunca serei o personagem da Odisséia de Homero, mas você era a minha Argos, o cachorro de Ulisses que o reconhece, 20 anos depois de sua partida, para morrer em seguida – a única da casa a reconhecer o dono sem necessidade de um sinal. Uma cena comovente que não consigo descrever.

Após os cuidados, fiz uma promessa silenciosa a você, Belinha, de que eu votaria em um candidato que fizesse oposição àquele cujo apoiador atirou em um cachorro que latia. Não foi para defender-se, ele estaria no carro e continuou atirando enquanto o cachorro fugia para dentro de casa, foi pela banalidade da vida, ou do mal, talvez Hannah Arendt concorde com o termo aqui.

Foi um passo difícil, você sabia Belinha, aliás Magoo e Espoleta sabiam também, companheiras nas caminhadas preocupadas. Eleitor de Ciro no primeiro turno, quando se vota em alguém cujo plano de governo nos fala mais de perto, minha tendência no segundo era, em princípio, com meu candidato excluído, seguir seu exemplo e abster-me no voto em branco ou nulo. Mas eu não podia, as nuvens de tempestade, o tiro pela vontade de matar o cachorro, uma promessa.

Nesses quatro anos, quantas mortes Belinha, ninguém sabe contar quantos animais mortos pelo fogo nas florestas. E, você não sabe Belinha, mas um dia depois do primeiro turno deste ano faleceu aos 58 anos o taxista Márcio Antônio do Nascimento Silva – que em junho de 2020, em uma cena terrível, recolocava as cruzes fincadas na areia de Copacabana pela ONG Rio de Paz, para homenagear as vítimas da Covid-19, arrancadas por apoiadores do Presidente. Não vi nenhuma recriminação (favor me corrigir se eu estiver errado), um pedido de desculpa pela atitude dos apoiadores – gostaria de crer que “ele” não ficou sabendo, gostaria. Resta o consolo de imaginar que o taxista Márcio Antônio pode ter reencontrado o filho de 25 anos, falecido de Covid-19 no mesmo mês de junho em que ele precisou recolocar as cruzes que homenageavam os mortos.

Este é um artigo Belinha, para renovar minha promessa – e vamos nós de novo, com  tranquilidade, fazer o que é preciso no próximo dia 30. É um voto para que em 2026 ocorram novamente eleições e possamos escolher a candidata ou candidato em um Brasil com a democracia mais fortalecida do que agora, onde adversários políticos não se vejam como inimigos, muito menos um cão que ladra enquanto a caravana passa.

 

Sergio Oliveira Moraes, físico, professor aposentado Esalq/USP

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima