No espelho manchado do banheiro, sou um brasileiro de tão triste. Não há poesia dada em minha barba branca a me espetar a pele em pequenos caracóis
tão depressivos como eu. Posta em pé sobre o ladrilho, minha nudez adiposa contrasta com a fome do meu povo que resiste sob sem tetos viadutos proibidos. Murcho a barriga a me querer honesto – mas uma dobra-desventura me escapa pela cintura revelando que eu não presto.
Arquejo. Tremo.
A água a me lavar o rosto automático e automática só não é mais fria que o banho criminoso despejado pela prefeitura sobre os mendigos que gelam nas madrugadas imorredouras de ruas e avenidas da grande capital do estado. Estado? Meus pés descalços tocam os cantos neutros do ladrilho de rejuntes desajustados a me reconhecerem um expatriado dentro de meu próprio banheiro – um judeu entre os remédios e a escova de dentes ao lado da torneira.
Me falta a coragem necessária para me chegar à navalha que me valha e que me cubra com o sangue do batismo a me irmanar aos que se mimetizam mudos às estáticas manhãs cinzentas de alma – apesar de que invadidas
por vidraças luminosas a pleno despertar do sol. Como é tristemente brasileiro esse acordar junto à pia, entre veios de uma água lacrimosa que escorre pelo ralo. Como são angustiantemente interiores e interioranas essas jornadas em exercícios bélicos e diários de sobrevivência.
Me dói usar o vaso. Preso o ventre de desejos e esperanças, puxar a descarga
me é uma imolação quase religiosa. Então, descubro que não há maior sacrifício do que vencer a um intestino constipado de panteões, de santos e deuses ao despertar das horas de um novo e sempre e mesmo dia que se sobrepõe em sequências cronológicas a mostrar que semanas e meses passam como as águas da privada e têm o mesmo destino.
A curta distância, o espelho insiste em dizer o que não sou – o que não vingou e se estancou suspenso como a toalha dependurada na maçaneta da porta carcomida por cupins. Não tenho mais tempo para um banho ético. Apesar disso, a um canto do banheiro me aguarda o chuveiro elétrico.
Recuo.
Recuso.
Não quero proteções ou purificações. Não quero o exclusivismo dos privilegiados escolhidos nas multidões. Não quero mais alegrias líquidas em terras secas de felicidade. Quero somente a desinfecção comprimida dentro dos tubos de venenos aerossóis.
Depois, rastejo para trás do armário e tranco sua porta como quem fecha uma última possibilidade de fuga: estou preso para sempre à realidade conservadora dos velhos azulejos classe-média.
Ao menos atrás do armário tudo ainda é sempre e o mesmo – não há nunca uma nova manhã nascida em falsa face ensaboada. Tudo é sempre e o mesmo eterno antever, pelo espelho, o novo dia que não vem. Tudo é sempre o sempre-novo dia que, todo dia, não vem.
Dentro do cesto, a roupa de ontem me espera pronta.
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Última crônicapoesia da série aberta com “Paineira” e “Oratório – crônicapoesia sem verbos”. Publicados em sequência neste matutino nestas últimas semanas.
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Alexandre Bragion, doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp e cronista de A Tribuna desde 2017