O que é sacro?

Pedro Barbarrossa

 

A calmaria é sempre sacra. Sei que não passamos a maior parte de nossas vidas calmos. Sei que a desordem por vezes é gentil, sumária, vital. Sei, acima de tudo, que quase a todo momento ela é imprescindível, que ela nos esgota, mas que também nos ativa. Preguei (e prego) a maior parte da minha vida pela desordem – e que me entendam com boas intenções! Pois a desordem é quase tudo à nossa volta, incluindo nós mesmos – e creio que continuarei a pregar por ela, para que não se revoltemos barbaramente sem um pingo de reflexão para com ela, que não a odiemos, que ela não seja enxotada em nome de algo maior e que não existe realmente, mas, pelo contrário, que a possamos compreender. É verdade, é o que prego no fundo, esse mergulho na própria lama fétida, essa coragem épica e ensandecida, essas meditações desvairadas acerca de tudo e acerca de nada, de nada importante, de relevância questionável, de vagarosidade espantosa e de ardor romântico. Prego por esse obsoleto retorno ao que é o verdadeiro primordial; obsoleto, porque, assim se hipocritamente categorizou os nossos tempos. Quando prego a desordem, por outro lado, cometo uma redundância cômica para com ela. Ela ri de mim enquanto eu a exalto, ou até melhor, a afirmo. “E por que? Por que insistir nela?”, alguém perguntaria. Porque, respondo eu, porque nenhum filho deve desistir de sua mãe; porque, prossigo, porque nosso coração, essa coisa tão desordenada que ele é, a é também. Porque, enfim, haverá inumeráveis porquês, algo passível de sequer mensurar. É muito mais fácil, afinal, exclamar o ridículo aterrorizante do que justificar a calmaria. Para se justificar a calmaria, é necessário um esforço divino – o que certamente não se aplica à desordem, facilmente apontada, pois facilmente encontrada. Mas aí é a trilha que se distingue ambas em sua essência: a desordem não chega a ser sacra, pois, se quisermos sacraliza-la, seria necessário sacraliza-la inteiramente e não somente pedaços dela. “Bem, pode ser” – um desordenado ferrenho poderia dizer. Mas será mesmo? A desordem de fato é vital, mas… sacra? Se sacralizamos a desordem, indiretamente fazemos apologia a qualquer coisa que nos ocorra.

Sim, de fato, a desordem é inevitável, e é ridículo aqueles que buscam maneiras de a evitar com uma frequência vã. Sacro, por definição, é aquilo que não se encontra facilmente em qualquer lugar; e na verdade, só há um lugar que ocasionalmente o encontramos, isto é, encontramos a calmaria: no espírito humano. “Mas como pode?”, questiona-me agora, “como pode-se encontrar no espírito sendo que ele também é desordenado? Como pode irromper a calmaria da desordem?”. Ora, já o enunciei acima, mas repito: a desordem tem algo que a calmaria desconhece: a gentileza. Ela pode ser gentil, pode ser implacavelmente cruel, por outro lado.

A calmaria são os intervalos que a desordem inventou e se presenteou. É rara, é sacra, sempre. E inventou por inventar, desordenadamente, quase que um acidente mesmo! Mas inventou. E é bom que ela seja sacra, rara, difícil. Se não o fosse, seria desordem. Prego uma compreensão da desordem pela desordem, algo exigente, pois a desordem já é naturalmente compreensível via a calmaria (que facilmente se compreende também).

A desordem pela desordem, não. É importante sempre meditarmos, sempre estarmos rodeados por esses exames. É importante que nos estranhemos, vez ou outra. É humanamente importante esse retorno. Caímos, dia após dia, nas besteiras, nas futilidades, na aceitação pobre de espiritualidade. Querem que engulamos a fé sem o espírito, sem a meditação. Querem que simplesmente engulamos.

Parafraseando uma citação (imprecisa) de Huxley, em Contraponto, “querem nos fazer odiarmos a nós mesmos” de todos os jeitos, com diversas armas, por diferentes meios. Querem que não nos movamos, que nos estagnemos numa circularidade sem nexo e grosseiramente ridícula. Querem que nos humilhemos e exaltemos Deus, o mercado, o estado, o povo, a empresa, a celebridade, o time, o Big Bang, menos a nós mesmos. Querem, com a licença do grande Huxley, não nos fazer odiarmos, mas esquecermo-nos por completo, esquecermo-nos antes, muito antes, que morramos, já quando participamos dos espaços públicos ou refugiamo-nos na nossa privacidade. “Esqueçam-se, esqueçam-se para a eternidade! Matem-se! Finjam que jamais existiram, que não há um ‘eu’ aí dentro! Façam de todo o possível, mas esqueçam-se!” – é o que todas as coisas dizem, a todo o momento, em todos os lugares.

E nós esquecemos que somos desordenados, mas esse esquecimento não nos faz desfrutar de uma genuína calmaria. O que acontece, é semelhante ao efeito de um anestésico: “isso, durmam, relaxem, comprem, vão a igreja, trabalhem, etc, etc…”. Entre alguns, a consciência disso já se evidencia a ponto de ser batido, mas a mera consciência não basta. Agora, precisamos voltar para a vida, para a desordem. Todos nós precisamos passar por sessões ininterruptas de lavagem, de renovação, de meditação séria, profunda, esgarçada, desgraçada. Precisamos todos nós sermos lavados desse monte de merda que nos deram para nos embostear, arrancar esses carcinomas consumidores, essas drogas doentias, essas podridões, essas cafajestes maquiagens que nos deram para nos esconder da desordem, da vida e, mais distante de tudo, da calmaria. Precisamos urgentemente voltar para nós, para os nossos espíritos, para o que é vital e para o que é sacro, verdadeiramente sacro, originalmente sacro, profundamente sacro. Um lugar que vale a pena, é um lugar por si mesmo – e nós não valemos por nada, salvo a possibilidade de o sermos para nós.

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Pedro Barbarrossa, estudante de Filosofia na Universidade Federal de Pelotas

 

 

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